Por Joana Salém Vasconcelos*
Universidade de São Paulo, Brasil

Resumo

Este texto é uma resenha do livro “ Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016) ”, de Fabio Luis Barbosa dos Santos. Resultado de pesquisas de campo em onze países, o livro apresenta uma análise bem-informada sobre os alcances e limites da onda progressista, explicando as particularidades de cada situação nacional e identificando seu movimento histórico comum. O fenômeno da onda progressista é entendido em sua heterogeneidade, não como um conjunto de governos, mas como um momento histórico. Ao explicar seus dilemas nacionais, o autor conseguiu traçar um quadro das suas correlações regionais e determinações compartilhadas. As tensões específicas de cada governo são analisadas a partir das suas alianças de classe, apoios e fraturas com os movimentos sociais e com as oligarquias, bem como os matizes de diferentes estratégias de integração. Ao problematizar o consenso extrativista, o autor propõe uma compreensão histórico-estrutural dos impasses da conjuntura latino-americana, recolocando a dependência e a desigualdade como fortalezas que obstruem os horizontes da transformação.

Introdução

O aforisma proposto por Silvia Rivera Cusicanqui, socióloga indígena boliviana, oferece uma pista sobre as inquietações que levaram o historiador Fabio Luis Barbosa dos Santos a escrever Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016) . Baseado em sete anos de pesquisa de campo e viagens por onze países, o autor convida ao debate sobre os impasses e limites da onda progressista, analisando os problemas da realidade latino-americana pelas lentes da história. Com sua primeira edição esgotada em poucos meses, o livro parece responder ao aumento da demanda dos leitores brasileiros por compreender a crise atual em perspectiva latino-americana . Afinal, como a euforia do progressismo desembocou em uma maré de mal-estar? De onde veio o sentimento de quebra de normalidade? Por que, com o que e como nos deixamos iludir? O livro é formado por catorze capítulos, cada um dedicado à história e à conjuntura de um país latino-americano, observando sua inserção particular na onda progressista .

O progressismo não foi tratado aqui como um grupo de governos , mas sim como um momento histórico heterogêneo . Portanto, além de Venezuela, Equador, Bolívia, Argentina, Brasil, Paraguai e México , o autor dedica capítulos ao Chile, à Colômbia e ao Peru, hegemonizados pelo neoliberalismo sem freios. No outro lado, há um capítulo sobre Cuba e as idiossincrasias da última revolução socialista que subsistiu. A integração latino-americana mereceu também um capítulo próprio, que decifra a sobreposição da Unasul, da Celac e da Alba. Ao destrinchar seus matizes, o autor abriu um locus pouco explorado de atritos entre lulismo e chavismo.

Perguntando-se sobre a relação dos progressismos com o campo popular e as classes dominantes em cada país, sobre sua funcionalidade política para ordem capitalista e sobre os alcances das mudanças projetadas, o autor adotou um método batizado como “pedagogia da viagem”, através do qual auscultou a realidade latino-americana com incursões em campo. A pesquisa foi construída em viagens coletivas e individuais, nas quais realizou cerca de duzentas entrevistas, visitas e observações empíricas, além de uma extensa exploração bibliográfica. Fabio Luis combinou tarefas de docência com investigação, formando grupos de alunos-pesquisadores-viajantes . Tal metodologia lhe permitiu resgatar elos perdidos entre o fazer historiográfico, a política contemporânea e o aprendizado coletivo. Além disso, viabilizou uma unidade orgânica entre pesquisa, ensino e extensão, à revelia de um contexto acadêmico que conduz à atomização das formas de conhecer. O resultado é uma espécie de arqueologia latino-americana do tempo presente, construída através do deslocamento e da imersão.

Progressismos, particularidades de uma história comum

A onda progressista, para o historiador, foi um processo heterogêneo e polifônico, repleto de especificidades e matizes nacionais, mas que, em perspectiva histórica, compõem um movimento comum, indicado na hipótese central da pesquisa: “a onda progressista explicita os estreitos limites para a mudança dentro da ordem na América Latina” (p. 19). E prossegue: “O ensejo de modificar estas sociedades sem enfrentar a raiz dos problemas – que remete à articulação entre dependência e desigualdade legada do passado colonial – limitou a mudança à superfície da política” (p. 19). Ou seja, “na América Latina, não há espaço para o meio-termo” (p. 75).

O autor recorda que as vitórias eleitorais dos progressismos resultam de um ciclo anterior de lutas populares e rechaço ao neoliberalismo dos anos 1990. A dose mudancista de cada experiência variou de acordo com seu atrelamento específico aos interesses das classes dominantes e sua permeabilidade às pressões do campo popular. Nessa equação, entraram também as características do setor primário-exportador nacional e as estratégias de estabilização institucional de cada arranjo partidário. Cada capítulo, portanto, é um mergulho na realidade de um país conduzido por perguntas afins e atravessado pela análise do movimento geral.

Em termos teóricos, o autor sugere que a curta duração dos progressismos precisa ser apreendida no seu cruzamento com a longa duração das estruturas. Para ele, a articulação entre dependência e desigualdade na América Latina e a fortaleza dos interesses de classe que as preservam ajudam a explicar o estreitamento dos horizontes para mudança, herdado do século passado e consolidado pelos pactos espúrios do presente. “As linhas gerais do movimento que desaguou na onda progressista remetem ao triunfo da contrarrevolução no período da Guerra Fria, que congelou a mudança histórica”, sintetiza. “O congelamento da mudança significou não só a derrota da revolução, mas também da reforma” (p. 520).

Nesse sentido, torna-se fundamental mapear as estruturas do neoextrativismo e as dinâmicas dos conflitos socioambientais – lidos pelo autor na chave da luta de classes. Estes seriam os fios condutores que explicam os limites do progressismo de cada realidade nacional.

O “consenso das commodities ”, como definiu Maristella Svampa, unificou progressistas e neoliberais na mesma Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), destinada a escoar os recursos naturais do nosso continente, sem processamento industrial (exceto aquele que ergueu os corredores de escoamento), gerenciadas por capitais estrangeiros (ou domésticos sem projeto nacional) e, por fim, em flagrante violação da soberania dos territórios indígenas e camponeses.

Concebida como infraestrutura da ALCA (regionalismo aberto), a IIRSA foi adotada pelos progressismos e envernizada com a retórica do “regionalismo neodesenvolvimentista”, ato contínuo dos acordos bilaterais de livre comércio com a China. Para Fabio Luis, em âmbito regional, o Brasil lulista neutralizou os propostas contra-hegemônicas da Venezuela chavista, como a ALBA, a moeda independente (Sucre) ou o Banco do Sul. Na contramão de um paradigma integrador de vínculos horizontais e isonômicos, a IIRSA foi financiada com créditos com BNDES e o Brasil se postulou como principal fiador da infraestrutura continental, por meio de megaempreendimentos que tornaram-se epicentro dos conflitos socioambientais e das rachaduras políticas do próprio progressismo.

A pesquisa de Fabio Luis nos mostra que, na contramão do wishful thinking , o pano de fundo da onda progressista foi a crise terminal dos projetos nacionais e a exacerbação da ordem desigual e dependente do capitalismo periférico latino-americano. Enfrentar esse ethos demandaria uma radicalidade antissistêmica que o progressismo, mesmo nas suas versões mais ousadas, não chegou a alcançar. E assim, pereceu.

Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai

E como os arranjos progressistas atuaram em cada país? Na impossibilidade de resenhar cada experiência nacional, escolhi cinco casos emblemáticos. Para Fabio Luis, a Venezuela representa o progressismo radicalizado pela Revolução Bolivariana de Chávez, que caiu na armadilha de um “subdesenvolvimento com abundância de divisas” (Furtado). Urdido por um humanismo que inflexionou ao “socialismo do século XXI”, Chávez enfrentou as oligarquias na disputa pelo excedente petroleiro, mas não desenvolveu um plano de contingência que assegurasse a continuidade das suas políticas sociais para além dos limites do “Estado mágico” (Coronil).

Assim, as promessas chavistas se materializaram de modo incipiente durante a alta dos preços do petróleo, mas nem a indústria petroleira era soberana para sustentar as mudanças, nem as comunas populares foram autônomas o suficiente para consolidar o poder das bases. Quando o preço do barril de petróleo despencou de 118 para 58 dólares em 2008, o frágil equilíbrio do “socialismo rentista” se desestabilizou numa crise sem retorno, agravada pela morte de Chávez em 2013. O dramático declínio das condições de vida expandiu o mercado ilegal de divisas (“sociabilidade rentista”) e desencadeou um feroz descontrole cambial. Para o autor, “a dinâmica eleitoral condicionou o alcance do chavismo a uma redistribuição democratizadora da receita petroleira, em que a extensão dos subsídios sob uma ótica universalista reforçou os padrões característicos do rentismo” (p. 70).

Assim, ao confrontar as classes dominantes no “terreno da política”, o bolivarianismo furtou-se do desafio da diversificação econômica, jogando gasolina na própria crise. Por último, o conglomerado econômico-militar que o chavismo ajudou a edificar para se perpetuar no poder criou uma elite estatal-extrativista armada, em contradição com o empoderamento comunitário.

Na Argentina, Fabio Luis mostra que é preciso compreender o kirchnerismo a partir de dois fenômenos: a história das duas almas do peronismo; e a crise do argentinazo de 2001, quando a revolta popular derrubou cinco presidentes em dez dias. E por que Néstor Kirchner, eleito em 2003, canalizou a mobilização? Exaltando a ideia de um “ capitalismo en serio ”, aproveitou-se do boom das commodities para turbinar políticas sociais de combate à pobreza e à fome, criando empregos e aumentando salários. No plano do poder, “os governos Kirchner compraram brigas que seus homólogos brasileiros jamais cogitaram” (p. 152), como a renegociação da dívida, a guerra contra os fundos abutres; a lei de meios; a reversão de privatizações (YPF); e especialmente, o julgamento e condenação de torturadores e assassinos da ditadura (tema que poderia ter sido mais desenvolvido).

Porém, o capitalismo en serio dos Kirchner não recuperou as indústrias e se sustentou igualmente no extrativismo, fabricando sua própria crise. O kirschnerismo, como definiu Fabio Luis, foi “o mínimo denominador possível entre a fúria popular e as exigências da ordem” (p. 153). Seguiu deslegitimando o setor social dissidente, suspendeu licenças para meios de comunicação comunitária, abusou da permissividade com agrotóxicos e apostou em atividades mineradoras multinacionais de alto risco socioambiental, como o fracking . A despeito da “amplificação retórica do conflito” (p.163), o projeto de Cristina já teria atingido seu limite.

Na Bolívia, a dupla Evo Morales e Álvaro García Linera talvez seja a que melhor confeccionou e disseminou uma autoimagem harmônica, integrada aos valores dos povos originários, emulando uma via indianista para a revolução social, vinculada à Pacha Mama e ao Bem Viver ( Suma Qamaña ). O autor menciona duas fases do governo Evo, a primeira marcada pelo enfrentamento com as oligarquias da medialuna ; e a segunda, pelo confronto com sua própria base, como os indígenas de TIPNIS. Aqui o modelo de integração IIRSA transformou o “socialismo indianista” em uma ideologia operadora do capitalismo neodesenvolvimentista financiado pelo BNDES. Assim, o Estado Plurinacional e as autonomias indígenas da Constituição de 2009 tornaram-se palavras diluídas em um projeto modernizador convencional, que apostou na mineração, no agronegócio e na repressão aos movimentos que romperam com o governo em 2011 (CIDOB, CONAMAQ). “No proceso de cambio boliviano, o aspecto criativo destas tensões só sobrevive como ideologia”, explica (p. 218).

No Equador, Rafael Correa permitiu que o Bem Viver ( Sumak Kawsay ) e os Direitos da Natureza fossem cristalizados na nova Constituição de 2008, ao mesmo tempo que afastou os sujeitos políticos e sociais que pretendiam levar a cabo uma transição ecológica e comunitária rumo ao modelo alternativo. Apesar de protagonizar a auditoria da dívida, o presidente da Revolução Cidadã nunca ameaçou a dolarização do país, que desde 2000 obstrui qualquer política econômica soberana. Assim como o conflito de TIPNIS na Bolívia, o conflito do Parque Nacional Yasuní no Equador foi um divisor de águas, no qual o progressismo escolheu o
lado da modernização transnacional extrativa, que adota como ingrediente a repressão às comunidades indígenas, movimentos sociais e ONGs. “Em 2010, registraram-se, cerca de 900 conflitos; em 2011, houve em torno de 800; em 2012, estimaram-se 700”, contabiliza o autor (p.242). Para concluir que, “a intensificação do extrativismo alienou o apoio de setores populares organizados, o que se pretendeu compensar com políticas assistencialistas aos empobrecidos inorgânicos” (p. 248).

Baseado em uma pesquisa sobre o “espaço brasiguaio”, Fabio Luis conta como latifundiários brasileiros da fronteira com o Paraguai, beneficiados com terras pela ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), protagonizaram a expansão da soja de 40 mil de hectares em 1973 para 2,8 milhões em 2011, tornando o país o 4o maior exportador mundial (p. 266). Lula foi fiador dessa política, consolidando a “República Unida da Soja” com créditos do BNDES e diplomacia. O autor articula as vozes de latifundiários brasiguaios, que em 2010 eram entusiastas no petismo: “o Lula nos deu uma assistência espetacular” (p. 271), diz um empresário rural brasileiro. “Ex-diretores dos órgãos encarregados de proceder a reforma agrária na Bolívia e no Paraguai relatam pressões exercidas pela diplomacia brasileira em defesa do empresariado rural” (p. 272), alerta. Conhecidos por discriminar paraguaios, latifundiários brasiguaios como Tranquilo Favero foram atores-chave na deposição de Lugo, dias depois do massacre de Curuguaty, em 2012. Para se estabilizar no poder, Lugo já havia se aliado a liberais e a dissidentes colorados , recuado no conflito de Ñacunday, desistido da reforma agrária e aceitado uma base militar dos Estados Unidos. Não foi suficiente. O governo petista se posicionou contra sua deposição, depois de passar oito anos fortalecendo os empresários rurais que o derrubaram. Ambivalências do progressismo?

Crítica e conclusão

Por fim, além de registrar meu enfático convite à leitura da obra inteira, gostaria de concluir com um elemento crítico. A minúcia da exposição de Fabio Luis sobre os sujeitos históricos indígenas, camponeses e trabalhadores organizados, infelizmente, contrasta com a reduzida importância dada aos movimentos feministas latino-americanos do último período.

Não se trata de “reivindicar um lugar ao sol” para as mulheres na história, mas sim reconhecer analiticamente que os feminismos produziram um terremoto nas lutas do continente. Por que ocorre tamanha omissão? A teoria e a política dos feminismos latino-americanos têm demonstrado que as dominações capitalista, patriarcal e colonial estiveram e estão organicamente atreladas, exigindo um olhar interseccional sobre os sujeitos das lutas populares.

Além disso, a necessidade de uma alternativa anticapitalista e ecológica aos progressismos, postulada pelo autor em suas teses finais, encontra nos movimentos feministas uma reserva de independência política transversal indispensável, sobretudo entre as correntes ecofeministas, da economia do cuidado, da ética da reciprocidade, da luta comunitária territorial e do compromisso com a horizontalidade. Ou seja, são as mulheres que tem protagonizado, nesse século, a alternativa política sinalizada pelo próprio autor. Por que não mapear seus feitos e identificar sua potência?

Ainda assim, Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016) é o melhor livro sobre a América Latina recente publicado no Brasil. Leitura indispensável a todos os interessados em compreender as particularidades dos arranjos de forças que sustentaram cada um dos governos progressistas; os limites da modernização via “consenso das commodities ”; o esgotamento da inclusão via programas de renda focalizada; e, enfim, as raízes da frustração social que acometeu o continente. Apesar do seu ocaso, a onda progressista é uma fábrica de ilusões que permanece ativa. Não tenho dúvidas de que o livro de Fabio Luis nos ajuda a escapar das mesmas armadilhas no futuro.

Referências

DOS SANTOS, Fabio Luis Barbosa. Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016). 2a ed. São Paulo: Elefante, 2019.

______ (ORG.). Pedagogia da viagem: Colômbia e Venezuela. São Paulo: Memorial da América Latina, 2017.

______ (ORG.). Pedagogia da viagem: Peru e Bolívia. São Paulo: Memorial da América
Latina, 2018.

DOS SANTOS, Fabio Luis; VASCONCELOS, Joana Salém & DESSOTI, Fabiana Rita (ORG.). Cuba no século XXI: dilemas da revolução. São Paulo: Elefante, 2017.

DOS SANTOS, Fabio Luis; DESSOTI, Fabiana Rita & FRANZONI, Marcela (ORG.). México e os desafios do progressismo tardio. Elefante: São Paulo, 2018.

RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Hambre de huelga. Morelos: Mirada Salvaje, 2014.

* Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo (USP). Mestra em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). // Ph.D Candidate in Economic History at Universidade de São Paulo (USP). Master Degree in Economic Development at Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). // E-mail: [email protected] . Orcid: 0000-0002-2984-7630.