Observatório da Defesa e Soberania

Ainda em abril de 2019, o vice-presidente Hamilton Mourão reconhecia: “se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas”.

 

Por Ana Penido, Jorge M. Oliveira Rodrigues e Suzeley Kalil Mathias*

Este texto é uma atualização do artigo publicado – Forças Armadas no Governo Bolsonaro – pelos autores no Portal do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Ele será referenciado algumas vezes ao longo do texto.

No dia 19 de abril, dia do Exército brasileiro, o Brasil viveu mais um ato de sua tragédia. Em cidades por todo o país, manifestantes apoiadores do governo Bolsonaro saíram às ruas contra as medidas de isolamento social diante da pandemia adotadas pelo Ministério da Saúde e por prefeitos e governadores. Alegavam se sentir lesados em seu direito de ir e vir. Contraditórios, exigiam em sua luta pela liberdade uma intervenção militar com Bolsonaro à frente e a edição de um novo Ato Institucional n° 5, nos moldes da norma adotada durante o regime burocrático-autoritário no Brasil. A cereja do bolo foi a presença do próprio presidente na manifestação ocorrida em frente ao Quartel Geral do Exército; e a promoção, via Twitter, de vídeo em que aparece discursando tendo como fundo de tela faixas clamando pela intervenção.

Gerson Camarotti aponta que, entre integrantes da chamada “ala militar” do governo, o sentimento era de mal-estar com a participação do presidente no ato, seja pela emergência sanitária que sugere evitar aglomerações, seja em virtude do local escolhido, uma vez que, como uma zona de segurança nacional, o trânsito nesse local deveria ser restrito. Não houve comentários quanto ao conteúdo antidemocrático da ação. Os maus humores também estariam associados ao local escolhido para a manifestação. Um dos oficiais ouvidos pela reportagem do Estadão dizia: “se a manifestação tivesse sido na Esplanada, na Praça dos Três Poderes ou em qualquer outro lugar seria mais do mesmo […]. Mas em frente ao QG, no dia do Exército, tem uma simbologia dupla muito forte. Não foi bom porque as Forças Armadas estão cuidando apenas das suas missões constitucionais, sem interferir em questões políticas”. O agravante da participação presidencial não passou despercebido. Melindrosos quanto às críticas ao comandante constitucional das Forças Armadas, as palavras utilizadas foram: “provocação”, “desnecessária” e “fora de hora”.

Mas foi o general da reserva e ex-ministro do governo Bolsonaro, Carlos Alberto Santos Cruz, quem deu um rosto a esse discurso. Em comentários sobre os atos, primeiro via Twitter e posteriormente em entrevista ao UOL, Santos Cruz reforçou a ideia de que, enquanto instituição, as Forças Armadas não representam governo algum. Referindo-se à participação de Bolsonaro no ato, Santos Cruz reforçou que os clamores por intervenção militar não tinham representação institucional [das FFAA]. Perguntado se a participação das Forças Armadas no governo Bolsonaro não poderia manchar a credibilidade da instituição, Santos Cruz rebateu: “O que eu vejo é que não existe essa, vamos dizer assim, essa marcha junto com o governo. […] Não é um alinhamento de governo. O Exército não é partidário. Não é de governo”.

O esforço em desconectar a imagem dos militares à do governo não é novo. Mesmo antes do início efetivo do governo Bolsonaro, a preocupação com o alto número de militares nos quadros governamentais e as consequências disso para a imagem das FFAA já era latente entre membros do alto escalão castrense. É o caso, por exemplo, da insistência de Villas Bôas, ainda em novembro de 2018, em ressaltar que, mesmo com elevado número de fardados no governo, não se tratava de um governo de militares.

A cada dia que passa, essa narrativa cai por terra. Ainda em abril de 2019, o vice-presidente Hamilton Mourão reconhecia: “se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas”. Desde então, cresceu muitíssimo em relevância a participação do partido militar[1] no governo, que passou a ser seu principal pilar de sustentação política quantitativa e qualitativamente. Com isso, os apontamentos de Rodrigues feitos em artigo também veiculado pelo Eris se confirmaram: trata-se de um governo militarizado. Isso fez com que o tom de parte da imprensa também se modificasse, como no histórico editorial do Estadão de 21 de abril. “Mas a guerra de Bolsonaro, já está claro, é contra as instituições da República e contra a maioria absoluta dos brasileiros, afrontados por um presidente que só se importa com o poder. Quem estiver na trincheira com Bolsonaro, seja no governo, seja em movimentos golpistas, vai se desmoralizar junto com ele”.

As FFAA parecem entender parcialmente a encalacrada a que foram arrastadas pelo partido militar, e começam algumas discretas manobras de distanciamento no intuito de estabelecer um cordão sanitário entre governo e as Forças. Se de início os fardados pretendiam-se como poder moderador, hoje é certo que se vêm assoberbados com preocupações sobre a própria fiabilidade da instituição. O Exército mantém sua preponderância, embora a participação da Marinha venha crescendo. Enfim, Mourão estava correto.

Em estudo recente publicado pelo Instituto Tricontinental, discutíamos a névoa que pairou sobre aspirações, ressentimentos e incursões políticas das forças castrenses no Brasil durante os últimos anos. Dizíamos então que o período de relativa equidistância vigente durante os dois mandatos do ex-presidente Lula ajudou a construir uma falsa imagem de distanciamento dos militares da política.

Em coluna recente na Folha de São Paulo, Janio de Freitas pontuava que “historicamente, nenhum outro segmento feriu tanto a disciplina, e com tamanha gravidade, quanto os militares”. Com efeito, não faltam em nossa história exemplos em que o peso da “mão amiga” se fez sentir. Para nos atermos aos mais recentes: a saída de José Viegas do ministério da Defesa após confronto com comandante do Exército; o antagonismo à presidenta Dilma Rousseff no marco da criação da Comissão Nacional da Verdade; a restauração e retorno ao controle militar do Gabinete de Segurança Institucional sob Michel Temer; e com especial menção, a pressão do então comandante do Exército, general Villas Boas, ao Supremo Tribunal Federal no marco do julgamento do habeas corpus de Lula.

Podemos dizer que ao subir no palanque, as Forças Armadas assumiram posição de vidraça, sujeitando-se às pedras. Temos então um cenário em que a atuação política dos militares não é novidade desta quadratura histórica, mas sim a preocupação que o governo da vez traga à Instituição revezes de credibilidade.

Por outro lado, é incorreta (ao menos quanto a forma) a pergunta que um conjunto de analistas tem se colocado: “até quando as FFAA irão com Bolsonaro? Até quando segurarão a mão dele?” Dizemos incorreta pois é irreal pensar que o principal partido do governo, detentor dos principais cargos, vá sair do governo, nos moldes do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, Osmar Terra ou outros. Em outras palavras, não acreditamos que as FFAA deixarão o governo, muito menos em plena pandemia. Da mesma maneira, pode-se afirmar que o partido militar não deu um golpe, ele entrou como parte do jogo, e se orgulham de terem voltado ao centro da política por meio da democracia. Nesse sentido, se seguirão com Bolsonaro é uma questão que diz menos às FFAA e sim às ferramentas democráticas de afastamento do presidente, baseadas no Legislativo, no Judiciário e na pressão popular.

Em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos, Kalil Mathias provoca: “as brigas palacianas são apenas pela forma, não pelo conteúdo”. Assim, mesmo que a preocupação com as manchas à imagem da instituição seja latente, mantêm-se as conveniências de permanecer no poder contando com uma figura “messiânica” e utilizando-se de seu apoio popular. São muitos os pontos de comunhão na agenda política: 1) uma nítida agenda moralizante, calcada numa vocação salvacionista auto-outorgada; 2) congruência na visão econômica e gerencialista, não mais pautada pelo nacional-desenvolvimentismo modernizante de Geisel[2]; 3) uma dimensão de crenças, baseada na negação à esquerda, as pautas consideradas identitárias, e a um patriotismo baseado no culto aos símbolos nacionais.

Vale mencionar um quarto aspecto intrigante da relação entre o partido militar e governo: a condução atabalhoada da política externa brasileira. Por sua função precípua, qual seja, a defesa do país contra ameaças externas, espera-se dos militares uma atenção especial às relações internacionais. Entretanto, apesar de algumas ações para amortecer impulsos olavistas do governo – como a fala conciliatória de Mourão no episódio “Dudu Bananinha”, em que Eduardo Bolsonaro acusou a China de ter sido criminosa quanto ao tratamento do Covid-19 – não temos por parte dos militares um posicionamento explícito em assuntos de política externa. Visto que estão se manifestando tanto, e sobre tantos assuntos, o silêncio da ala militar é ensurdecedor nesse tema.

Temos, portanto, um cenário dúbio, mas complementar. Por um lado, o partido fardado circunda a Presidência, vendendo-se como polo racional e como alternativa aceitável num eventual impeachment de Bolsonaro. Por outro, permanecem no governo pelo cálculo de que Bolsonaro possui os votos que eles não tem para a condução de um projeto com o qual mais concordam que discordam. As cicatrizes e o ônus adquirido com o golpe de 64 fez com que agissem sorrateiramente. Hoje, a atuação partidarizada é levada a cabo em paralelo a um esforço discursivo de separação institucional entre governo e FFAA. Nesse processo, revezam-se em carcereiros e prisioneiros.

Por fim, é absurdo que em meio a uma pandemia, com milhares de mortos no mundo inteiro e o crescimento rápido dos índices de óbitos no Brasil, superando o número de brasileiros mortos na Segunda Guerra, essa seja a nossa preocupação. Esperamos, com a esperança dos pessimistas, que o governo Bolsonaro seja findado e que a democracia se imponha antes de chegarmos no fundo do abismo.

*Texto originalmente publicado no Gedes