Pesquisa das Juventudes em Periferias Urbanas

Há um setor de trabalhadores informais que tem chamado a atenção da mídia e da população em geral: os entregadores de aplicativos e suas recentes mobilizações.

 

Por Lauro Carvalho e Stella Paterniani

 

Seguimos com nossa série de textos que abordam experiências, questões e análises sobre os impactos da pandemia do novo coronavírus nas periferias. Buscamos priorizar temas que muitas vezes passam desapercebidos ou não são priorizados em muitos debates, bem como reforçar a rede de pesquisa, informação e produção de conhecimento comprometida com a vida das pessoas nas periferias.

Entendemos as periferias tanto quanto as periferias do sistema-mundo, o chamado Sul Global, como o Brasil, como as periferias dessas periferias: as regiões e pessoas vulnerabilizadas por condições produtivas estruturais e conjunturais e que, no entanto, produzem suas vidas e seus modos de conhecer e de estar no mundo para além das urgências e da miséria do presente e do possível. Este texto, o segundo da série, busca evidenciar como a falta de políticas públicas positivas para renda e trabalho na pandemia acaba por agravar a vida da classe trabalhadora. Clique aqui para conferir o primeiro texto da série, Territorializar e racializar a pandemia.

O CoronaChoque intensificou a crise econômica, política e social que já estava instalada no Brasil. Para se ter uma ideia, o Boletim da Rede Pesquisa Solidária apresentou resultados de um estudo realizado com mais de 70 lideranças comunitárias em seis regiões metropolitanas do país entre os dias 5 e 11 de maio de 2020. Nele, a fome aparece como o principal problema vivenciado nas periferias em decorrência da pandemia. A mesma pesquisa aponta o desemprego, a redução do salário e a ausência de renda como o segundo efeito sentido da pandemia nas periferias. As lideranças comunitárias destacaram especialmente os casos dos trabalhadores informais e autônomos, dispensados sem garantia de remuneração nem previsão de retomada das atividades. É o caso das faxineiras diaristas, das cuidadoras e dos profissionais de manutenção e construção civil.

Como estamos vivendo o agravamento de uma crise existente, ao comparar dados com anos anteriores partimos de patamares muito baixos. Mesmo assim, o ano de 2020 nos apresenta resultados catastróficos. Segundo levantamento publicado pelo CESIT, “a queda na ocupação foi significativa: 3,1 milhões na comparação com o mesmo período do ano anterior ou 4,9 milhões no comparativo com o trimestre anterior. Com isso, a população fora da força de trabalho salta de 64,9 milhões entre fev-abril de 2019 para 70,9 milhões”. Um dos elementos apontados para o aumento destes números é a combinação entre a dificuldade de buscar emprego e a diminuição das contratações. Um bom exemplo é o setor de comércio e serviços, que estão entre os que mais empregam e que, na crise, foram os que tiveram maior taxa de redução de postos formais de trabalho. Já os trabalhadores informais tiveram redução de trabalho chegando a 77% do total (próximo a 3,7 milhões de pessoas que perderam sua fonte de renda principal).

Mas, apesar da redução geral de postos de trabalho, há um setor de trabalhadores informais que tem chamado a atenção da mídia e da população em geral: os entregadores de aplicativos e suas recentes mobilizações. Segundo entrevista do professor Marco Aurélio Santana, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os entregadores e entregadoras de aplicativos somavam cerca de 5,5 milhões de trabalhadores em 2019, e representam atualmente cerca de 1/4 dos trabalhadores por conta própria no país. Só em março, o Ifood recebeu 175 mil novos pedidos de cadastros. Segundo relatório técnico da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR), “Condições de trabalho em empresas de plataforma digital: os entregadores por aplicativo durante a Covid-19”, os entregadores estão trabalhando mais e ganhando menos na pandemia. Os resultados da pesquisa, que entrevistou 252 entregadores de 26 estados, indicam que 77,4% dos entrevistados estão realizando trabalho “ininterrupto”; 52% trabalham sete dias na semana e 25,4% trabalham seis dias na semana; 89,7% tiveram uma redução salarial ou mantiveram a mesma durante a pandemia, contra 10,3% que obtiveram aumento. Quase metade deles (48,7%) recebiam até R$ 520,00 semanais antes da pandemia, percentual que subiu para 72,8% depois do início do coronavírus.

Os entregadores de aplicativos são, em grande maioria, jovens e negros das periferias, que, na falta de emprego formal, têm buscado saídas nas plataformas no chamado “empreendedorismo”. Para Maria Augusta Tavares, no período de crise, os empreendedores estão “presos do lado de fora”. Ou seja, durante a pandemia os trabalhadores mais precarizados, moradores das periferias brasileiras, são expostos aos maiores riscos no contágio e transmissão do vírus.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Contínua (PNADC), o desemprego entre os jovens de 18 a 24 anos aumentou no primeiro trimestre de 2020, com o recorde de 34,1% na região Nordeste. No mesmo período, a média nacional foi de 27,1% (no mesmo período de 2019 foi de 23,8%). Dentre estes jovens desempregados, a maior taxa é entre mulheres (14,5% contra 10,4% de homens), autodeclaradas pretas ou pardas (15,2% e 14% respectivamente, contra 9,8% de brancas), com ensino médio incompleto (20,4%, contra 6,3% com ensino superior completo).

Vale destacar que esse quadro da juventude também se repete entre os nossos vizinhos de nossa América Latina, para usar o termo da antropóloga Lélia Gonzalez. Ainda em maio, o diretor regional da Organização Internacional do Trabalho (OIT) na América Latina e Caribe, Vinícius Pinheiro, destacou a situação da juventude trabalhadora (de 15 a 24 anos), a partir do relatório “Global Employment Trends for Youth 2020: Technology and future of Jobs”. Segundo ele, “na América Latina e no Caribe, existem 9,4 milhões de jovens desempregados (as), 23 milhões que não estudam, nem trabalham, nem estão em treinamento e mais de 30 milhões só conseguem emprego informal”. Os quem não estudam e não trabalham representam 1/5 dos jovens na região. Ainda segundo Pinheiro, a crise tem agravado também a desigualdade entre homens e mulheres na América Latina: mulheres jovens se encontram em situação mais crítica: 28,9% delas estão no grupo dos que não estudam e não trabalham, em contraponto a 14,6% de homens. Essa diferença também se reflete no emprego, com a taxa de mulheres jovens desempregadas sendo de 22%, enquanto a dos jovens homens está quase sete pontos percentuais abaixo, 15,2%.

Situação das mulheres

No Brasil, dados da PNADC 2020 mostram que 7 milhões de mulheres abandonaram o mercado de trabalho na última quinzena de março, dois milhões a mais que o número de homens. As mulheres são maioria na linha de frente do combate ao coronavírus. Segundo o Conselho Federal de Enfermagem, as equipes de enfermagem no Brasil (enfermeiros, auxiliares e técnicos) são predominantemente formadas por mulheres, 84,6%. As mulheres também são mais sobrecarregadas com o trabalho doméstico na quarentena. Dados de 2019 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontavam que mulheres dedicavam em média 18,5 horas semanais aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas, contra 10,3 horas semanais gastas nessas atividades por homens. Na pandemia, essa diferença se intensifica.

A violência doméstica também tem aumentado na quarentena, principalmente nas regiões periféricas das grandes cidades, em que o confinamento pode obrigar mulheres, meninas e meninos a conviver com o seu agressor ou abusador. Ficar em casa aumenta sua vulnerabilidade e é um risco para suas vidas. Neste período, apesar de ser mais difícil fazer a denúncia na delegacia, foi registrado um aumento de 9% nas denúncias via ligação no 180. Só em São Paulo, o aumento no número de atendimentos a mulheres vítimas de violência chegou a 44,9%, e de registros de feminicídio, a 46,2%. No Rio de Janeiro, o aumento chegou a 50% nos casos de violência doméstica.

 

Políticas públicas

Após pressão social por medidas que respondam ao CoronaChoque, o governo federal acabou cedendo em alguns pontos de suas propostas para o enfrentamento do desemprego e queda na renda da população. As principais medidas anunciadas e implementadas foram o “Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda” (MP 936) e o “Programa Emergencial de Suporte a Empregos” (MP 944). A MP 936 chegou a contemplar 8,2 milhões de trabalhadores em maio, mais da metade nos setores de serviços e comércio, seguidos pela indústria. Esse programa permite que, para evitar a demissão, os trabalhadores possam ter suspensos seus contatos de trabalho por até dois meses, e sua jornada e seu salário reduzidos por três meses, com benefício acordado com o trabalhador, oriundo do Estado e/ou do empregador. Já a MP 944, que teve impacto menor, seria destinada a empresas de receita de até R$ 10 milhões, concedendo linhas de crédito para folha de pagamentos de até dois salários mínimos, por dois meses. Por fim, a terceira das principais medidas adotadas foi o Auxílio Emergencial (MP 937). Essa medida foi voltada diretamente para a população desempregada, para os enquadrados como microempreendedores individuais (MEIs), trabalhadores informais e contribuintes individuais da Previdência Social. Ela estabelece um benefício de R$ 600,00 ou R$ 1.200,00 (este, para mães chefes de família), pagos por três meses. Até o final de maio, foram registrados cerca de 107 milhões de pedidos, e realizados pagamentos para quase 57 milhões de pessoas. Boa parte das solicitações vem de “chefas de família”, mulheres que são responsáveis diretas pelo sustento e cuidados familiares: mulheres que vivem, com o CoronaChoque, com suas conquistas ameaçadas pela condição desigual no mercado de trabalho e pelo agravamento das situações de violência.

Mas esses números, além de insuficientes, revelam contradições. São muitos os relatos de problemas com o auxílio emergencial liberado pelo governo federal, como o atraso no recebimento, filas e aglomerações formadas por quem precisa receber, a necessidade de um celular com internet para fazer o cadastro e a completa desconsideração das pessoas em situação de rua como população beneficiada pela medida. Pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva demonstrou a má distribuição dos recursos: um terço das famílias de renda A e B, burlando o cadastro, pediram o auxílio; destes, 69% foi aprovado. Em contrapartida, as famílias mais necessitadas encontram problemas para acessar e obter o auxílio, principalmente por três fatores: difícil acesso à internet e a informações sobre o cadastro; dificuldade no processo de cadastro, com dados desatualizados ou imprecisos; e lentidão do governo em responder as demandas, chegando a mais de um mês para obter retorno.

É provável que em curto espaço de tempo tenhamos uma explosão dessas contradições. A destruição dos direitos trabalhistas e do mercado de trabalho brasileiro, o baixo impacto das medidas de manutenção de empregos, o baixo valor e o pouco tempo de vigência do auxílio emergencial e os problemas que situações de confinamento geram, somado ao estado de calamidade que tem conduzido o povo brasileiro, nos leva a uma situação-limite. Estamos vendo que para boa parte da população ficar em casa não tem sido uma possibilidade. A melhor forma de combater o CoronaChoque é por meio de medidas que restabeleçam direitos e que garantam auxílios substanciais para o povo, restabelecendo postos no mercado de trabalho e retomando o desenvolvimento.