Nota 2

Enquanto Jair Bolsonaro viajava para a reunião de cúpula do G20 no Japão, em meio às críticas de Angela Merkel chanceler alemã e representantes do governo francês sobre os retrocessos nas políticas de proteção ambiental promovidas pelo governo brasileiro, em Bruxelas no dia 28 de junho era assinado, após mais de 20 anos de negociações, o acordo de “livre” comércio entre o Mercosul e a União Europeia.

O acordo é firmado em uma conjuntura política e econômica de intensificação da guerra comercial entre EUA e China na disputa pela hegemonia do mercado, bem como internamente nos países sul-americanos de fragilidade na situação argentina, com o aprofundamento da crise econômica e no Brasil do avanço da agenda ultra neoliberal do governo Bolsonaro. No Paraguai o governo de Mario Abdo Benítez tem buscado implantar uma agenda fortemente conservadora e por fim, o Uruguai passará por eleições em outubro deste ano, com a busca da Frente Ampla de vencer novamente a eleição.

No Mercosul há uma mudança de perspectiva, este vinha buscando uma integração para além das questões comerciais, integrando aspectos sociais e de convergência entre os países membros, tudo indica uma virada no bloco para uma integração voltada para o livre comércio e aos interesses do capital transnacional.

Pelo que foi comunicado pelo Itamaraty e pelo que tem sido apresentado nos principais veículos de imprensa, este é um acordo que vai além da pauta comercial, envolvendo aspectos políticos, como temas sobre ciência e tecnologia, infraestrutura, educação, direitos do consumidor, energia, defesa e combate ao terrorismo.

Apresentaremos a seguir os principais termos que tem relação com a agropecuária, em especial no Brasil, será utilizado o “Resumo informativo elaborado pelo governo brasileiro[1]”, além de notícias e relatos veiculados pelos meios de comunicação. Por fim, traremos alguns apontamentos sobre o que pode significar este acordo em termos de consequências.

Alguns aspectos do acordo

O acordo firmado entre o Mercosul e a União Europeia em 28 de junho de 2019 não entra em vigor imediatamente, segundo notícias da imprensa deve levar ao menos dois anos para que comece a ser implementado.

Para entrar em vigor é necessário, entre outros procedimentos, que o Parlamento Europeu o aprove, bem como os parlamentos dos países membros dos dois blocos. Este processo deverá enfrentar resistências, como dos pequenos agricultores europeus, ambientalistas que veem com preocupação os retrocessos nas políticas ambientais e na proteção de terras e comunidades indígenas levado a cabo pelo governo brasileiro.

Outro aspecto importante a ser destacado é que os produtos não terão suas tarifas levadas imediatamente a zero. Haverá, dependendo do produto, um prazo para que as tarifas sejam zeradas (desgravação tarifária), variando de imediato, 4 anos, 7 anos e 10 anos. Para alguns produtos, tidos como “sensíveis”, haverá uma quota de importação, que varia de acordo com o tipo de produto.

Os dois blocos representaram, em 2018, 25% da economia mundial, com um PIB conjunto de 20 trilhões de dólares, e representa um mercado de 780 milhões de pessoas.

No aspecto comercial, para o ano de 2018, segundo apontam os dados do Itamaraty, a União Europeia representou 32% da pauta de exportação agrícola brasileira, com destaque para: a) insumo para ração animal (US$ 3,4 bilhões); b) café (US$ 2,3 bilhões); c) oleaginosas e grãos (US$ 2 bilhões); d) preparações alimentícias vegetais (US$ 1,3 bilhão); e) carnes (US$ 989 milhões). Apontando para a predominância das commodities agrícolas na exportação brasileira, elemento central da dependência do país dos produtos primários.

A partir do acordo, a União Europeia se comprometeria a liberar 82% do volume de comércio no setor agrícola, bem como, 77% das linhas tarifárias (representação de um produto no sistema harmonizado) e daria acesso preferencial ao Mercosul nas importações agrícolas, o que poderá entrar em contradição com o protecionismo que alguns países implementam de sua agricultura, como a França por exemplo.

Os produtores de soja, milho, proteína animal e do setor sucroalcoleiro deverão ser os principais beneficiários, estes são os principais setores do agronegócio brasileiro.

Outros produtores que seriam beneficiados com a eliminação de tarifas seriam, segundo informações do Itamaraty: a) café torrado e solúvel (desgravação em 4 anos); b) fumo manufaturado (cesta de 7 anos); c) fumo não manufaturado (cesta de 4 anos); d) abacates (cesta de 4 anos); e) limões e limas (cesta de 7 anos); f) melões e melancias (cesta de 7 anos); g) uvas de mesa (desgravação imediata); h) maçãs (cesta de 10 anos); i) peixes (maioria na entrada em vigor); j) óleos vegetais (desgravação imediata).

A seguir tabela com relação dos produtos que entrariam no sistema de quotas.

Produto Termos do acordo
Carne bovina 99 mil toneladas peso carcaça, 55% resfriada e 45% congelada, com intraquota de 7.5% e volume crescente em 6 estágios. Cota Hilton (10 mil toneladas): intraquota passará de 20% a 0% na entrada em vigor do acordo
Carne de aves 180 mil toneladas peso carcaça, intraquota zero, 50% com osso e 50% desossada e volume crescente em 6 estágios
Carne suína 25 mil toneladas, intraquota de 83 euros/tonelada e volume crescente em 6 estágios
Açúcar 180 mil toneladas (WTO quota), intraquota zero na entrada em vigor do acordo. Quota específica para o Paraguai de 10 mil toneladas, com intraquota zero
Etanol 450 mil toneladas de etanol industrial, intraquota zero na entrada em vigor do acordo. 200 mil toneladas de etanol para outros usos (inclusive combustível), intraquota com 1/3 da tarifa aplicada europeia (6,4 ou 3,4 euros/hectolitro), volume crescente em 6 estágios
Arroz 60 mil toneladas, intraquota zero na entrada em vigor, volume crescente em 6 estágios
Mel 45 mil toneladas, intraquota zero na entrada em vigor, volume crescente em 6 estágios
Milho (sweetcorn) Um milhão de toneladas, intraquota zero na entrada em vigor do acordo, volume crescente em 6 estágios
Suco de laranja Suco com preço acima de € 30/100kg será beneficiado com desgravação de 12% para zero em 7 anos, de 15% para zero em 10 anos e de 34% para zero em 10 anos (valores ad valorizados). Suco com valor não superior a € 30/100kg terá preferência fixa de 50% da alíquota de 15,2 + 20,6 €/100 kg e 33,6 + 20,6 €/100 kg
Cachaça Garrafas inferiores a 2 litros terão seu comércio liberalizado em 4 anos. A cachaça a granel terá quota de 2.400 toneladas com intraquota zero e volume crescente em 5 anos. Atualmente a aguardente paga alíquota de aproximadamente 8%
Informações obtidas a partir do “resumo informativo elaborado pelo governo brasileiro”, link na nota 1.

Fonte: Itamaraty

Da parte do bloco sul-americano este liberará 96% do volume de comércio e 94% das linhas tarifárias, com destaque para desgravação total de produtos como azeite de oliva, bebidas e whisky, malte, entre outros.

Produtos que entraram no sistema de quotas de importação estão queijos, leite em pó, fórmula infantil, vinhos, espumantes, alho, chocolate e intermediários de cacau.

Nos aspectos que vão além do comércio de mercadorias, importante destacar a liberalização do setor de serviços, possibilitando que empresas da União Europeia possam prestar serviços na área de comunicações, transporte, serviços financeiros, entre outros. Essa abertura possibilitará que as empresas transnacionais possam atuar nestes setores, até então com algum grau de proteção.

Outro elemento que terá profundo impacto é a abertura para que empresas transnacionais possam participar de licitações públicas. Este mecanismo acaba por impossibilitar que o governo possa utilizar as compras públicas como forma de impulsionar setores locais da economia, bem como o fortalecimento de encadeamentos na economia nacional. Este processo poderá implicar no fim do mercado institucional, na esteira do desmonte das políticas públicas para a agricultura familiar.

Por fim, é importante destacar que o acordo prevê o endurecimento das patentes, a maioria no controle das corporações transnacionais, bem como o estabelecimento de câmaras de negociação de controvérsias, que poderão colocar o direito dos investidores acima dos direitos sociais e ambientais. Poderá ainda impactar na reformulação das organizações com predominância do capital transnacional como a ABAG em detrimento das organizações ligadas a setores mais tradicionais do agronegócio, como a SRB.

Possíveis consequências do acordo

O acordo firmado entre o Mercosul e a União Europeia reafirma a histórica divisão entre o centro e a periferia na economia mundial, com os países da região como produtores de matérias-primas e commodities agrícolas e os países europeus como exportadores de mercadorias industrializadas com maior valor agregado.

O jornalista Luís Nassif[1] lembra oportunamente o acordo realizado entre a Inglaterra e Portugal em 1703, o Tratado de Methuen, conhecido como tratado de panos e vinhos. Neste acordo, a Inglaterra abriu o seu mercado para os vinhos portugueses e em contrapartida este abriu seu mercado para os produtos têxteis ingleses. O resultado foi à eliminação da pequena indústria nascente portuguesa e a transferência das reservas de ouro deste país para a Inglaterra.

O acordo agora entre os dois blocos é, evidentemente, mais amplo e complexo, mas reimprime a lógica da divisão internacional do trabalho, e terá potencial de aprofundar a já em curso desindustrialização dos países da região, com especial impacto na indústria brasileira.

Ademais, esse acordo elimina as possibilidades de políticas industriais que poderiam beneficiar a indústria local, como os mecanismos de preferencia nas compras governamentais, que estarão, se autorizado o acordo pelos parlamentos locais, entregues a concorrência com as indústrias europeias, que em média possuem maior produtividade.
O acordo prevê ainda o fortalecimento das leis de patentes, impactando na indústria farmacêutica de produtos genéricos, por exemplo, o que também fortalecerá os grandes conglomerados transnacionais europeus desta indústria.

É importante destacar o uso político que se tem feito na região com a assinatura do acordo, em especial com a proximidade das eleições na Argentina, onde o atual presidente neoliberal Mauricio Macri concorre à reeleição.

No Brasil o governo Bolsonaro tem imprimido em seus primeiros seis meses de governo uma agenda de desmonte das políticas sociais, ambientais e de atendimento às demandas do mercado financeiro, como a reforma da previdência e a possível proposta de reforma tributária, que tenderá a aprofundar a crise econômica e social por que passa o país, se utiliza da propaganda entorno ao acordo para alimentar expectativas de que poderia haver com essas políticas alguma retomada do crescimento.

Este acordo, se aprovado, deverá significar a destruição do intento de constituição de um bloco regional, sob as aspirações neodesenvolvimentistas dos governos do bloco sul-americanos nas últimas duas décadas, que agora tem se transformado em vetor de transmissão dos interesses do capital transnacional.

Este acordo também se insere no acirramento da disputa pela hegemonia das principais potencias do centro global, com a intensificação da guerra comercial EUA-China, a Europa – e não o Mercosul – busca se posicionar para manter sua posição na estrutura global do capital.

Vale o destaque de que o acordo firmado entre os dois blocos deverá enfrentar resistência para que seja implementado, com ênfase para a agenda ambiental, que no Brasil tem sido alvo constante de ataques do governo federal, apontando para profundos retrocessos, essa agenda já tem tido reações em setores ambientalistas, mas também por representantes de países europeus.

A resistência externa também se reflete entre os agricultores europeus, estes gozam de proteção a sua produção da entrada de produtos agrícolas estrangeiros, na França é onde há até o momento a maior sinalização de que estes se posicionarão contrários ao acordo.

No Brasil, as indústrias serão afetadas negativamente quando expostas a concorrência das empresas europeias e as limitações que a política industrial poderá sofrer. Entretanto, as características de dependência e subordinação que historicamente se apresenta na burguesia brasileira, incapaz de conduzir um projeto nacional de desenvolvimento deve impedir que esta se posicionasse contrariamente ao acordo.

Neste sentido, restará aos trabalhadores apresentar alguma forma de resistência, sejam os trabalhadores urbanos que terão seus empregos ameaçados, mas também os pequenos agricultores, em que o acordo, somado a destruição das políticas públicas voltadas para essa população, possivelmente constituirá maiores perdas, na medida em que se vier a ser implementado esse acordo, as transnacionais do agronegócio ganharão mais espaço na agricultura brasileira.

[1] Acordo de associação MERCOSUL-UNIÃO EUROPEIA. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/images/2019/2019_07_03_-_Resumo_Acordo_Mercosul_UE.pdf

Referências
[1] O acordo Mercosul-União Europeia reedita a tragédia do Tratado de Methuen, por Luís Nassif. Disponível em. https://jornalggn.com.br/coluna-economica/o-acordo-mercosul/
REFERÊNCIAS

Acordo de associação MERCOSUL-UNIÃO EUROPEIA. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/images/2019/2019_07_03_-_Resumo_Acordo_Mercosul_UE.pdf

Acordo com UE ameaça desenvolvimento do País, diz ex executivo do BRICS. Disponível em. https://www.brasildefato.com.br/2019/07/03/acordo-com-uniao-europeia-ameaca-desenvolvimento-do-pais-diz-ex-executivo-dos-brics/

Com acordo, exportações de açúcar e etanol para a UE podem triplicar. Disponível em. https://www.valor.com.br/agro/6329125/com-acordo-exportacoes-de-acucar-e-etanol-ue-podem-triplicar

Crítica da França sobre acordo Mercosul-UE é interna, diz Araújo. Disponível em. https://www.valor.com.br/brasil/6328573/critica-da-franca-sobre-acordo-mercosul-ue-e-interna-diz-araujo

Entenda as principais dúvidas sobre o acordo MERCOSUL e EU. Disponível em. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2019/07/15/entenda-as-principais-duvidas-sobre-acordo-entre-mercosul-e-uniao-europeia.htm

Los perdedores de siempre. Disponível em. https://nuso.org/articulo/ue-mercosur-europa-ganadores-perdedores-integracion/?utm_source=email&utm_medium=email

Mercosul-EU: acordo deve gerar oportunidade para soja e milho, diz Aprosoja. Disponível em: https://canalrural.uol.com.br/noticias/agricultura/mercosul-ue-acordo-oportunidade-produtores-graos-aprosoja/

O acordo Mercosul-União Europeia reedita a tragédia do Tratado de Methuen, por Luis Nassif. https://jornalggn.com.br/coluna-economica/o-acordo-mercosul/

Povo indígena alerta UE sobre Amazônia: “Vocês estão financiando crime”. Disponível em. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/povo-indigena-alerta-ue-sobre-amazonia-voces-estao-financiando-crime/

Um acordo para Europeu ver… Disponível em. https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/um-acordo-pra-europeu-ver/