Paralização dos entregadores de aplicativo na praça Charles Miller, Pacaembu. Rovena Rosa/Agência Brasil

 

 

Entregadores de aplicativos, pandemônio e pandemia
“agora dão duas opções para quem é pobre,
morrer na rua de corona ou em casa de fome
Entre morrer em casa e morrer na rua,
eu prefiro nenhuma das duas”
Rap dos Informais

 

Por Lauro Carvalho e Stella Paterniani

 

A greve dos entregadores de aplicativos talvez tenha sido um dos momentos de maior destaque em 2020, quando olhamos as novas formas de organização dos trabalhadores. Apesar de recorrerem a uma prática já bastante conhecida, a greve, os entregadores de aplicativos inovaram na forma de articulação e nos sujeitos que estão envolvidos no processo. Com um formato de trabalho bastante recente e ainda não totalmente abarcado pela justiça trabalhista brasileira, a categoria movimentou o debate político ao convocar suas paralisações e a provocar reflexões a partir de um caráter aparentemente confuso e eivado de disputas entre o trabalhador e o aplicativo.

Uma das principais características do movimento foi sua descentralização. Com isso, não houve uma pauta de reivindicações nacionalmente uniforme, mas ganhou destaque demandas mais imediatas, como acesso direto às gorjetas, sem a mediação do aplicativo, contra os bloqueios arbitrários de entregadores pelos aplicativos, auxílios de saúde, acidente e distribuição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs); além da reivindicação por melhores taxas nos valores das corridas. Durante o processo de mobilização, foram relatadas greves em pelo menos sete capitais do país, entre outras cidades.

Chama atenção as manifestações não terem colocado os direitos trabalhistas clássicos do sindicalismo no centro das reivindicações. Eles estavam presentes, mas de forma contraditória. O maior exemplo é a disputa em torno da reivindicação de carteira assinada, vista por muitos como limitadora da suposta autonomia que o vínculo com os aplicativos permite. Além disso, uma minoria já possuía vínculo trabalhista formal e trabalhava como entregador para complementar renda, o que também tira do horizonte a reivindicação pela carteira assinada. Por outro lado, outros reivindicavam a formalização e os direitos trabalhistas por meio do reconhecimento de que são trabalhadores, ao mesmo tempo em que denunciavam a ideologia do empreendedorismo propagandeada pelos aplicativos, responsável por revestir de uma falsa sensação de autonomia a condição de precariedade do trabalho do entregador.

 

Trabalhador ou empreendedor?

Segundo entrevista do professor Marco Aurélio Santana, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entregadores e entregadoras de aplicativos somavam cerca de 5,5 milhões de trabalhadores em 2019, e hoje representam algo em torno de um quarto dos trabalhadores por conta própria no país. Só em março, o Ifood recebeu 175 mil novos pedidos de cadastros. Com isso, agrava-se uma situação já bastante crítica. Segundo relatório técnico da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR), “Condições de trabalho em empresas de plataforma digital: os entregadores por aplicativo durante a Covid-19”, os entregadores estão trabalhando mais e ganhando menos na pandemia. Os resultados da pesquisa, que entrevistou 252 entregadores de 26 estados nos primeiros meses da pandemia, indicam que 77,4% dos entrevistados estão realizando trabalho “ininterrupto”; 52% trabalham sete dias na semana e 25,4% trabalham 6 dias semanais. Além disso, 89,7% tiveram uma redução salarial ou mantiveram a mesma durante a pandemia, contra 10,3% que obtiveram aumento. Quase metade deles (48,7%) recebiam até R$ 520,00 semanais antes da pandemia, percentual que subiu para 72,8% depois do início do isolamento. Já a pesquisa da Aliança Bike (Associação Brasileira do Setor de Bicicletas) apontou que quem consegue rodar 12 horas por dia fazendo entrega ganha, em média, R$ 936,00.

Já uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos Conjunturais da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) com entregadores das cinco regiões do país por meio de questionário online, respondido entre os dias 26 e 31 de julho de 2020, indicou que a média de tempo de trabalho, entre os que têm os aplicativos como única ocupação, é de 64,5 horas por semana. Considerando o rendimento líquido para um mês de trabalho, 44% dos entregadores conseguem menos do que um salário mínimo e 85% menos do que 2 salários mínimos.

Uma das coisas que chama atenção nas mobilizações dos entregadores de aplicativos é o fato deles irem se constituindo como uma categoria de trabalhadores – sobre a qual ainda há pouquíssimos dados. Embora a categoria não seja nova no mundo do trabalho brasileiro, ela sofreu transformações quantitativas e qualitativas, sendo um dos setores da ponta do processo da chamada uberização do trabalho, como destaca o professor Marco Aurélio Santana. O professor destaca as mudanças da reforma trabalhista aprovada em 2017 e da lei de terceirizações que, alardeadas sob a roupagem do empreendedorismo, têm feito avançar ainda mais a precarização e a informalidade do trabalho, deixando o trabalhador sob sua própria conta e risco: “É a classe trabalhadora plataformizada que opera em meio ao sistema mobilizado por aplicativos, articulando a sofisticada tecnologia digital com formas regressivas e precárias de trabalho”.

 

Juventude negra de periferia no trabalho precarizado

Em nossas pesquisas, temos argumentado como as periferias brasileiras consistem em territórios marcados por relações de classe e raça. Pesquisas mais recentes têm nos mostrado que os entregadores de aplicativos são, em grande parte, jovens e negros das periferias que, muitas vezes, sem trabalho formal, encontram a saída no trabalho informal. Como temos afirmado, é parte da periferia que mantém a possibilidade do isolamento social funcionar e se manter: são os trabalhadores das periferias que compõem muitos dos chamados serviços essenciais durante a pandemia, como técnicas de enfermagem, motoristas de transportes coletivo, profissionais de limpeza e entregadores de aplicativos.

Nesse ano, em que os jovens foram afetados pelo CoronaChoque tanto na educação como no trabalho, diante do desemprego que galopou e da frágil e insuficiente política estatal de combate aos efeitos do vírus, o capitalismo de plataforma mostrou mais um de seus efeitos perversos: o aumento no trabalho de crianças, adolescentes e jovens. Uma sondagem das Nações Unidas em São Paulo indicou um aumento de 26% no trabalho de crianças e jovens com menos de 18 anos entre maio e julho de 2020. A Fundação Thomson Reuters publicou uma reportagem denunciando que menores de 18 anos têm usado documentos de parentes mais velhos para se cadastrar nas plataformas de aplicativos, e as empresas não têm se responsabilizado pelos dados cadastrados.

Dados da Pnad Covid divulgados em maio de 2020 indicavam que cerca de metade da população entre 14 e 35 anos estava recebendo o auxílio aluguel, enquanto, ao mesmo tempo, 70% da população da mesma faixa etária não estava trabalhando. Também a Pnad Covid foi nos mostrando, ao longo do ano, como o desemprego foi aumentando, atingindo 14 milhões de pessoas no país em setembro. No mesmo mês, dos 46,1 milhões de estudantes matriculados em escolas e universidades, mais de 6 milhões não tiveram nenhuma atividade.

Embora ainda não exista uma categoria específica de entregadores de aplicativos dentre as categorias da Pnad Contínua nem da Pnad-Covid (IBGE), olhamos, na Pnad Contínua, para a categoria “Condutores de motocicletas” e, na Pnad Covid, reunimos as categorias “Motoboys”, “Motoristas” (que envolve motoristas de aplicativos, táxi, van, mototáxi e ônibus) e “Entregadores” (Entregadores de mercadorias de restaurantes, de farmácia, de loja, Uber Eats, Ifood, Rappi etc.) para propor algumas reflexões. Importante destacar que isso significa que os dados não são precisos, já que não dizem respeito apenas aos entregadores de aplicativos por incluir outros trabalhadores, e pelo fato da categoria da Pnad Contínua, “Condutores de motocicletas”, não incluir os entregadores de bicicleta, parte importante dos entregadores de aplicativos. Nesse sentido, algumas de nossas indicações podem estar distorcidas.

A primeira indicação está de acordo com o observado por Manzano e Krein (2020): uma relativa estabilidade no número de trabalhadores Condutores de motocicletas, de acordo com a Pnad Contínua, entre 2012 e 2016, e o crescimento desse número a partir de 2016. Do primeiro trimestre de 2016 ao primeiro trimestre de 2020, o número de Condutores de motocicletas aumentou 39,2%: saltou de 522,1 mil para 729,7 mil (Gráfico 1).

 

Gráfico 1: Crescimento do número de Condutores de motocicletas na Pnad Contínua, de 2012 a 2020. Brasil, 2020.

Fonte: IBGE – PNAD Contínua 2012-2020. Elaboração: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

 

Junto com o crescimento do número de Condutores de motocicletas, também cresce entre eles a taxa de informalidade. A informalidade entre esses trabalhadores aumentou mais do que a média de todos os trabalhadores ocupados no país, o que sugere um aumento expressivo do trabalho via plataformas de aplicativos e também reforça o que o Instituto Tricontinental tem dito desde o início da pandemia: que a Covid-19 apenas intensifica uma crise econômica e social que o Brasil já vinha enfrentando desde antes.

Além da informalidade, outra dimensão expressa a precariedade do trabalho por empregadores: a queda nos seus rendimentos mensais. Manzano e Krein (2020) novamente lembram que, enquanto o rendimento médio mensal real (deflacionado pelo INPC) do total de ocupados no Brasil aumentou 7,4% no período de 2012 a 2020, o rendimento médio mensal dos condutores de motocicletas caiu 6,4%, de acordo com a Pnad Contínua.

Os dados da Pnad-Covid reforçam nossa proposição de que os entregadores de aplicativos sejam, em grande parte, jovens e negros das periferias. A proporção de negros entre os Motoristas, em maio de 2020, era de 58,8%; entre os Motoboys, de 65,8%; e entre os Entregadores, de 61,7% (Tabela 1).

 

Tabela 1: Distribuição racial dos entregadores de aplicativo. Brasil, 2020

Fonte: IBGE – PNAD COVID 19, maio/2020. Elaboração: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Obs.: Estatísticas classificadas como experimentais. *A categoria Negros é a soma das categorias preta e parda da variável cor/raça do IBGE.

 

Além disso, os dados da Pnad Covid também reforçam um considerável aumento de jovens trabalhando nas categorias de Motoboys e Entregadores. Em maio de 2020, a porcentagem de trabalhadores com até 29 anos entre os Motoboys foi de 46,5% e, entre os Entregadores, de 40,6%, contra 25,5% entre o total de pessoas ocupadas. No caso da categoria Motorista, nota-se o inverso: apenas 14,4% estava nessa faixa etária. Por outro lado, a proporção de Motoristas com mais de 40 anos foi de 58% – muito maior do que a proporção do total de ocupados, que é de 46,5%. Reunidas, as três categorias tiveram em sua composição, de acordo com a Pnad-Covid de maio de 2020, 36% de pessoas de 14 a 35 anos e 60% de pessoas de 35 a 65 anos. Os dados refletem as dificuldades do desemprego: pessoas muito jovens viram Entregadores e pessoas com idade mais avançada tornam-se Motoristas.

 

“Não somos empreendedores”

Parte dos entregadores de aplicativo compõem o movimento de entregadores antifascistas, que enquadram suas reivindicações por melhores condições de trabalho e em defesa da democracia, contra o capitalismo e contra o governo Jair Bolsonaro. Destes, quem tem se destacado na relação com a imprensa e como figura à frente das manifestações e mobilizações é Paulo Lima, morador da periferia de São Paulo conhecido como Galo, apelido que herdou por causa da moto 7 Galo que pilotava. Paulo viralizou com vídeos nos quais denunciava abusos das empresas de aplicativos; foi um dos organizadores de abaixo-assinado solicitando fornecimento de alimentação e álcool gel pelas empresas para os entregadores; em retaliação, sofreu bloqueio das plataformas em que estava cadastrado. Galo tem se dedicado a mobilizar entregadores de aplicativos na atual conjuntura, que ele caracteriza como o pandemônio e a pandemia: “Ninguém nesse país que tem mais direito de estar na rua protestando que os entregadores, porque a gente já está na rua e aglomerado. Quando sai um pedido no restaurante, junta 20, 30, 40 entregadores para pegar os pedidos. Então, as pessoas que falam que não era pra estar na rua vão ter que lidar primeiro com a hipocrisia.”, afirmou Galo em entrevista à Pública.

Nascido e criado na Zona Sul de São Paulo, região fortemente marcada pelo rap e pelo hip hop, como o de Sabotage – conhecido como o maestro do Canão em alusão à favela -, Galo conta que, quando criança, queria ser bandido: eles é quem eram respeitados na favela. Em entrevista ao UOL, Galo conta que “Quando você olha e vê que quem é respeitado ao seu redor é bandido, você quer ser igual. Mas a kriptonita do bandido é a polícia, né? Da polícia tem que ter medo. Nessa mesma época, passei a ouvir rap, e via os artistas xingando e denunciando a polícia nas músicas. E ainda por cima eles falavam o endereço deles. ‘Zona sul, Capão, pá, polícia racista’. Aí estava eu lá com 10 anos pensando: ‘mano, se eles falam assim da polícia, esses devem ser os maiores bandidos de São Paulo. E se for para ser bandido, eu tenho que ser esse tipo de bandido.”

E foi aí que o entregador antifascista começou a frequentar rolês de hip hop e rap e, orientado pelo rapper e educador Dugueto Shabazz, começou também a frequentar os saraus de poesia, como o Sarau da Cooperifa. Foi pelo rap, pelo hip hop e pela poesia que Galo se formou politicamente. “O movimento hip hop é uma escola de política”. Galo se define como um político de rua, e cita nomes de outros que respeita: Jesus Cristo, Gandhi, Luther King, Malcolm X, Tupac Amaro, Emiliano Zapata, Zumbi dos Palmares, Joana D’Arc, Rosa Luxemburgo.

Galo trabalha como motoboy desde 2012. De 2012 a 2015, sofreu dois acidentes que quase custaram sua vida, o que fez procurar outros trabalhos. Em 2017, desempregado, voltou a ser motoboy e se deparou com a novidade do mercado: dominado pelos aplicativos. No dia 21 de março de 2020, dia de seu aniversário de 31 anos, ao sair para uma entrega, o pneu de sua moto furou. Sem auxílio da empresa de aplicativo, ele conta que a empresa o orientou a cancelar o pedido e que ele não seria penalizado por isso. Seguiu a orientação, deu seu jeito no conserto da moto e foi bloqueado no aplicativo. Daí ele fez um vídeo que viralizou e um abaixo-assinado que bateu 100 mil assinaturas.

Pammela Silva, de 21 anos, se destaca como uma das lideranças do movimento de entregadoras antifascistas em Pernambuco, e se define como jovem, negra, lésbica e da periferia. Ela conta que viu uma matéria com Galo e foi falar com ele pelas redes sociais. Imediatamente, viu que suas ideias combinavam e resolveram que ela organizaria o movimento dos entregadores antifascistas em Pernambuco, que conta principalmente com gente de Recife e da região metropolitana.

Pammela dá mais detalhes sobre as reivindicações da categoria: aumento das taxas de entrega, aumento do valor mínimo das corridas, fim do bloqueio indevido, seguro de vida e fim do sistema de pontuação. Fornecimento de EPIs, como álcool gel e máscaras, locais para ir ao banheiro e alimentação também compõem as reivindicações. Tratam-se, em suma, de reivindicações por reconhecimento e dignidade no trabalho.

Pammela e Galo reafirmam: “não somos empreendedores”. Os entregadores antifascistas reivindicam a CLT e direitos trabalhistas. Galo, especialmente, tem buscado denunciar a mentira contada aos entregadores sobre eles serem empreendedores. Por outro lado, a pesquisa da UFBA revela que, apesar da precarização, pouco mais da metade dos entregadores afirma não querer ter carteira assinada, com receio de piora nos rendimentos e redução de liberdade. O próprio Galo apresenta uma análise para isso: a ideologia do empreendedorismo é que cria a ilusão de liberdade, autonomia e independência e estimula soluções individuais para problemas sociais, conjunturais ou estruturais, o que faz com que muitas vezes entregadores se sintam ofendidos ao serem chamados de trabalhadores.

Brecar o capitalismo de plataforma

Como bem aponta Maria Augusta Tavares, no período de crise, os trabalhadores mais precarizados chamados empreendedores sob a ideologia voluntarista do empreendedorismo estão “presos do lado de fora”. A formalização do trabalho, por outro lado, garante ao trabalhador direitos como férias, FGTS, 13° salário, jornada com limites de horários e descanso semanal. Como escrevem Vitor Filgueiras e Renata Dutra: “A CLT impõe limites ao poder das empresas, regulando uma relação entre partes desiguais. Sem ela, não há limites e, por isso, há tendência à exploração extrema dos trabalhadores”. Os autores trazem também um outro elemento que desfaz o receio de que a celetização reduziria os rendimentos e restringiria a liberdade: de acordo com a PNAD-Covid, entregadores com carteira assinada tem rendimentos superiores aos autônomos. Isso já era uma realidade antes da pandemia (8% acima) e se intensificou durante a agravamento do isolamento (56% superior).

O breque dos app, como foram chamadas as paralisações no Brasil, escancarou as terríveis condições de trabalho do chamado capitalismo por plataforma, que prevê uma enorme massa de trabalhadores à disposição das empresas de aplicativo, desonerando-as de quaisquer responsabilidades com saúde e acidentes de trabalho e operando numa perversa lógica de descarte. Os entregadores antifascistas tomaram a frente para denunciar essa lógica, brecando seu ritmo nas grandes cidades brasileiras.