Pesquisa das Juventudes em Periferias Urbanas

 

Por Stella Paterniani e Lauro Carvalho

 

Seguimos com nossa série de textos que abordam experiências, questões e análises sobre os impactos da pandemia do novo coronavírus nas periferias. Buscamos priorizar temas que muitas vezes passam desapercebidos ou não são priorizados em muitos debates, bem como reforçar a rede de pesquisa, informação e produção de conhecimento comprometida com a vida das pessoas nestes locais. Este terceiro texto da série busca demonstrar as experiências de solidariedade e as saídas populares para superar o CoronaChoque.

 

Solidariedade: do quê estamos falando?

O agravamento, com a pandemia do novo coronavírus, da crise econômica, política e social que já estava instalada no Brasil, tem afetado especialmente as periferias. A ausência de ações específicas de prevenção e cuidado de acordo com a necessidade de cada território por parte do Estado e dos governos colocou uma palavra na boca dos brasileiros: solidariedade. O CoronaChoque tem levado muitos artistas, coletivos, organizações sociais, associações de bairro, grupos de amigos e familiares ou mesmo indivíduos a intensificar ou iniciar ações e campanhas de solidariedade. O povo está inventando suas próprias formas de superar os desafios impostos pelo vírus e pelo Estado brasileiro, especialmente no que diz respeito à manutenção de renda, obtenção de alimentos e promoção da saúde e bem-estar.

As “lives” de artistas agora são parte da rotina, ao apresentarem, geralmente de suas casas, seus maiores sucessos, transmitidos pela internet para milhões de pessoas, enquanto arrecadam toneladas de alimentos, álcool gel e produtos básicos de higiene e milhares de reais acumulados em doações. Por um lado, pessoas preocupadas em ajudar o próximo oferecem doações de acordo com suas possibilidades. Mas os principais envolvidos nessas doações, que acumulam as cifras de milhares de reais, são grandes grupos empresariais e corporações, que aparecem sob a prática da solidariedade S.A.

A solidariedade S.A., como destacou Kelli Mafort, da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), funciona como caridade: ela é vertical, a partir de uma relação entre quem tem e escolhe doar e quem não tem e só pode receber. Essa relação compreende as pessoas que recebem as doações como meros receptáculos da benevolência de quem doa. É um modo de olhar e se relacionar com o outro muito parecido com o que Paulo Freire chama de educação bancária. Sabemos, ainda, no caso das grandes corporações, que as doações funcionam como propaganda, que poderão estimular ainda mais os lucros das empresas num futuro próximo.

Por outro lado, temos a solidariedade popular, da periferia para a periferia, protagonizada por coletivos de cultura, movimentos populares, movimentos negros, associações de bairro, torcidas antifascistas de times de futebol, grupos de amigos e familiares que se juntam para exercitar a solidariedade horizontal. Essa solidariedade funciona a partir de uma relação orgânica, próxima ao que Paulo Freire denomina de educação popular, e entende a solidariedade, ela mesma, como uma relação em que todos os envolvidos participam e têm algo a partilhar e receber.

Duas das experiências marcantes desse tipo de solidariedade são a Campanha Periferia Viva, constituída pelo MST, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), Levante Popular da Juventude, Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) e Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM); e a campanha “Vamos precisar de todo mundo”, composta pelas Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo. Ambas contam com a participação de diversas organizações urbanas e do campo na arrecadação e distribuição, convergindo o alimento fruto da reforma agrária à panela vazia da periferia, promovendo o encontro entre pessoas do campo e da cidade e fortalecendo uma rede de luta contra o atual governo e por reforma agrária e urbana popular.

Essas campanhas também têm acumulado toneladas de alimentos em doações. Em Pernambuco, a distribuição de marmitas solidárias, que acontece diariamente no Armazém do Campo, fechou o mês de maio com a produção e distribuição de 42 mil marmitas. As marmitas solidárias também são doadas em todos os outros estados em que o Armazém do Campo está consolidado: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Pernambuco e São Luís do Maranhão. Veja mais números das doações da Campanha Periferia Viva.

 

Comunicar, articular, organizar, doar

Além das campanhas articuladas em âmbito nacional, como as mencionadas acima, também podemos destacar as ações de solidariedade popular desenvolvidas localmente, o “nós por nós” de cada periferia, que tentamos organizar em três tipos: comunicação, articulação e organização.

O primeiro tipo são as iniciativas visando a informação e a comunicação: podcasts, boletins, produção de informação de e para as periferias. Esse tipo de iniciativa confronta, por exemplo, as fake news, como as informações e orientações de contágio e prevenção que não levam em conta as especificidades das periferias. Tornar o isolamento social e a máxima do “Fique em casa” como a única política de prevenção e combate à Covid-19 a ser disseminada, universaliza uma experiência específica: a de quem pode ficar em casa. Isso não leva em conta quem está tendo que sair às ruas por pressão e exigência de patroas e patrões, para colocar comida na mesa de casa. Assim, iniciativas de informação e comunicação que levem em conta a realidade das periferias são fundamentais, tanto para informar sobre medidas de prevenção quanto medidas do poder público relacionadas ao coronavírus. O Pandemia Sem Neurose se dedicou a informar sobre os cuidados que jovens que precisam circular devem ter para evitar a contaminação; ou como pegar os remédios necessários para seguir tratamentos de saúde já iniciados pelo SUS; ou sobre a proposta do Senado Federal de aprovar um projeto de lei que amplie o auxílio emergencial para entregadores de aplicativo, taxistas, manicures, entre outras profissões.

O segundo tipo de ação nas periferias pelas periferias são as articulações. A Central Única das Favelas (CUFA), presente no Brasil inteiro, montou uma logística em mais de cinco mil favelas com mais de cem mil voluntários que atuam na logística de doações e no combate às fake news. Preto Zezé destaca a centralidade das “mães da favela”, ação que prioriza o auxílio às mães solteiras nestes locais, as mais afetadas pela pandemia por não conseguirem sair de casa para trabalhar por terem seus filhos em casa. A CUFA também defende que a renda básica emergencial se torne permanente.

O terceiro tipo tem sido as experiências de organização, que tem reunido militantes, lideranças comunitárias e voluntários em torno de cursos, doações, atuação e formação política. A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem destacado a importância das lideranças comunitárias na comunicação dos riscos e do controle da epidemia, especialmente em territórios socialmente vulnerabilizados. A Uneafro organizou um curso online e gratuito, com vídeos e cartilhas, de formação para agentes populares de saúde. Esse curso tem o objetivo de fazer com que qualquer pessoa possa orientar moradores do seu território sobre como obter benefícios sociais; prevenção e riscos de contágio; o que fazer ao se deparar com pessoas com sintomas e medidas de autocuidado. Nas periferias de São Paulo, tem aparecido uma série de campanhas de doação para compra de alimentos e itens de higiene, como a do Aquilombando contra o Covid-19, do distrito de Parada de Taipas, próximo à Brasilândia, ou a ação dos times de futebol de várzea. O mesmo acontece nas periferias de Belém, no Pará.

Uma das experiências de organização mais exemplares e efetivas de combate à pandemia vem acontecendo em Paraisópolis, na cidade de São Paulo, como mostra uma pesquisa do Instituto Pólis, divulgada em 23 de junho de 2020. A comunidade de Paraisópolis organizou-se por meio de três eixos de ação. O eixo central foi a criação de presidentes de rua, voluntários responsáveis por monitorar a saúde dos moradores – cada um encarregado por 50 famílias de sua rua. Atualmente, são 652 presidentes, dos quais 536 são mulheres, que foram capacitadas para dar encaminhamento às pessoas que apresentarem sintomas, além de serem responsáveis por arrecadar e distribuir cestas básicas. O segundo eixo foi a construção de um sistema de saúde na comunidade, que transformou escolas públicas em centros de acolhimento para infectados poderem ficar em quarentena de maneira segura, contratou médicos, socorristas e enfermeiros para atuar 24 horas dentro da comunidade – e três ambulâncias equipadas para o atendimento de sintomáticos da Covid-19, incluindo uma UTI móvel -, capacitou 240 moradores para atuar como socorristas para apoiar 60 bases de emergência para pronto atendimento, criadas com a presença de bombeiros civis; e obteve, por meio de parceria privada, 20 mil testes, disponibilizados nas três Unidades Básicas de Saúde do bairro.

O terceiro eixo estruturante do combate à pandemia em Paraisópolis tem sido articulações para doações, atividades de geração de renda e produção de alimentação para a comunidade. É importante destacar o protagonismo das mulheres na coordenação dessas articulações. Elizandra Cerqueira, Presidente da Associação de Mulheres de Paraisópolis, coordena uma ação de produção e entrega de 10 mil marmitas por dia na região, que funciona por meio de uma vaquinha virtual que permite que um restaurante da região siga funcionando, produzindo, distribuindo as marmitas e remunerando 20 mulheres que trabalham no restaurante e foram alunas de um curso de culinária oferecido desde 2006 pela associação de Mulheres de Paraisópolis. Outra iniciativa importante foi lançada por Rejane Santos: a campanha Adote uma diarista, cujo valor doado é usado para apoiar diaristas que moram na comunidade. Por fim, as costureiras do projeto Costurando Sonhos, que já existia na região, têm confeccionado em suas casas máscaras para serem distribuídas para os moradores de Paraisópolis.

Essas são iniciativas de solidariedade popular nacionais e locais que, embora não contem com o volume de recursos financeiros e midiático da solidariedade S.A., geram grande impacto na realidade da população das periferias: comunicam, informam, fortalecem e organizam a vida do povo. Diferente da forma bancária, são formadas e estruturadas a partir de relações participativas: todos os envolvidos acrescentam, produzem e constroem a solidariedade. Com o CoronaChoque, o agravamento de relações precárias de trabalho e seus impactos negativos sobre a renda da população, a autonomia, a criatividade, a ousadia e a responsabilidade coletiva do “nós por nós” se mostram fundamentais para garantir a vida nos territórios constantemente vulnerabilizados pelo Estado. Reconhecer e resgatar a solidariedade popular é apostar na infinita capacidade de ação, superação e criação do povo para seguir produzindo e reconstruindo o Brasil que queremos.