O impacto da crise do petróleo não é menor diante da importância desse bem natural para o funcionamento da produção global capitalista.

Por André de Oliveira Cardoso*

A turbulência que nos encontramos hoje é sem tamanho. Para aqueles que tem como profissão, tarefa ou mesmo curiosidade de entender as movimentações das classes sociais, emprego, economia nacional, geopolítica entre outras variáveis, os acontecimentos que aparecem diariamente muitas vezes impedem que tenhamos uma interpretação mais acurada do momento e projetar cenários em um mundo tumultuado.

Imersos em mais uma crise do sistema capitalista de ordens econômica, política, social, ambiental e a mais recente, a sanitária, nos desafiam a entender sua natureza e apresentar propostas concretas de alternativas a esse quadro de complexas contradições. Entender qual o papel e influência de cada acontecimento e variável específica, dentro dessa grande rede, pode nos ajudar no propósito de analisar e intervir na realidade.

Dessa forma, o objetivo aqui é de contribuir com o debate sobre os acontecimentos em torno da produção e preços do petróleo dentro dessa crise maior no âmbito mundial, e em um próximo artigo aprofundar o papel do Brasil e da Petrobras, que tem muitas especificidades. Se carregamos uma série de contradições do capitalismo desde a última grande crise em 2008, como representação do esgotamento de uma forma de acumulação do capitalismo, e se hoje vivemos um choque que intensificou a crise a partir da pandemia do Covid-19, o impacto da crise do petróleo não é menor diante da importância desse bem natural para o funcionamento da produção global capitalista.

A importância do petróleo na produção capitalista global

Primeiro cabe resgatar o papel do petróleo como um bem mineral não-renovável de ordem estratégica para a economia capitalista como principal fonte de energia, uma commoditie energética e matéria-prima industrial. No princípio, em meados de 1850, havia a necessidade de aumentar a produção de querosene para o uso de iluminação; nos dias atuais há a utilização de seus diversos derivados como fonte de energia, combustíveis e outros insumos. O petróleo revolucionou a produção industrial por ser um combustível barato, de fácil transporte e com capacidades de ampliar os ganhos sobre o trabalho. Ou seja, é a energia motor no próprio desenvolvimento acelerado do capitalismo. O desenvolvimento de sua exploração e produção possui relação direta com as transformações na história da indústria em seu processo de acumulação capitalista.

Atualmente 90% do petróleo é usado como combustível para meios de transporte ou para os fornos industriais pelas centrais elétricas; os demais 10% referem-se aos insumos destinados a outras indústrias em seu processo produtivo. A estimativa é que 60% das matérias-primas utilizadas na indústria mundial venha do petróleo. Isso evidencia a centralidade que esse bem natural tomou na sociedade contemporânea.

O petróleo tornou-se a principal fonte de energia do modo de vida urbano-industrial. É a mais flexível, a que mais facilita a produção e o consumo. Permite mover máquinas sem depender de redes estruturadas e caras. Só sua indústria relaciona uma extensa cadeia de produção que vai desde a exploração e produção dos hidrocarbonetos até a produção e distribuição de seus derivados destinada ao consumidor final. Cada elo dessa cadeia se relaciona a uma variedade de outros setores da economia, no fornecimento de matérias primas e máquinas para seu funcionamento.

A importância do petróleo na disputa geopolítica mundial

Dada a importância do petróleo, a disputa pelo controle sobre a produção e o preço estão entre os principais objetivos da geopolítica, especificamente do imperialismo estadunidense, que desde o início condiciona sua hegemonia mundial à expansão de suas empresas para além das fronteiras nacionais e o controle do petróleo como a fonte de energia principal. Os EUA avançaram a partir de acordos econômicos e guerras, como no golpe na Argentina em 1922, no governo de Hipólito Yrigoyen, e no Irã em 1953, primeiramente como embargo comercial e, posteriormente a derrubada do governo de Mossadegh. Outros exemplos são o assassinato do empresário italiano Mattei em 1962, que se opunha ao cartel das Sete Irmãs (nome dado pelo italiano às grandes empresas transnacionais que dominavam o mercado internacional, hoje composto pela ExxonMobil, ChevronTexaco, Shell e BP) e o embate contra o presidente Nasser no Egito contra a nacionalização do Canal de Suez, em 1956.

A partir dos processos de descolonização e independência de países da África e Ásia na década de 60 com a defesa de sua autodeterminação, a luta pelo controle de seus bens estratégicos se intensifica, fomentando a criação de empresas nacionais de petróleo e a nacionalização dessa matéria-prima, trazendo um novo elemento para alterar a correlação de forças dessa indústria por meio da criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), composta atualmente por Arábia Saudita, Argélia, Angola, Congo, Guiné Equatorial, Gabão, Emirados Árabes, Irã, Iraque, Kuwait, Líbia, Nigéria e Venezuela. Esses países concentram 71,8% das reservas mundiais de petróleo.

No transcurso dos anos, muitas outras transformações são observadas nessa indústria dentro da dinâmica de funcionamento do sistema capitalista, entre crises e fases de crescimento, com novos atores (com o aumento da produção nos EUA, Brasil, Canadá, Colômbia, Inglaterra e Noruega), novas formas de controle e choques de preços, além de guerras mais desenvolvidas e complexas, que envolvem desde a desestabilização econômica por meio de sanções e estrangulamento de recursos financeiros por parte dos EUA, até ações diretas desse mesmo país pelo controle dessa commoditie.

Diante da crescente debilidade do projeto hegemônico estadunidense após a crise iniciada em 2008, uma das saídas utilizadas pelos EUA foi uma nova ofensiva imperialista global, com o objetivo de reforçar um padrão de acumulação predatório. Esse novo ciclo neoliberal se expressa, hoje, na intensa e voraz apropriação dos bens comuns da natureza, o que intensifica as disputas por seu controle entre as potências globais e blocos econômicos. Assim, vivenciamos, a nível internacional, uma competição exasperada pelos territórios e bens naturais que explica o porquê de tantos conflitos bélicos, com guerras convencionais e não convencionais. É perceptível como as zonas de guerra das últimas décadas seguem a rota do petróleo.

É emblemático que os conflitos nesse último período contra Venezuela, que possui as maiores reservas de petróleo do mundo, tenham recomeçado a partir do momento em que o ex-presidente Hugo Chávez e o povo venezuelano retomaram o controle da exploração do petróleo e de outros bens naturais a favor do desenvolvimento de seu próprio país. Não à toa, as atuais sanções econômicas dos EUA focam na produção do petróleo local. As investidas contra o Irã, também com sanções econômicas, dificultam a venda de seu petróleo para outros países, embora a China se recuse a suspender suas relações com esse país. O assassinato do general iraniano Soleimani pelos EUA no início de 2020 também nos serve como exemplo de uma investida militar direta contra o país persa.

O preço do petróleo e os blocos econômicos

De forma simplificada, poderíamos afirmar que é do interesse dos grandes consumidores de petróleo, como EUA, manter o preço desse produto baixo para reduzir custos na produção de outros bens e serviços. Por outro lado, o preço alto do petróleo aumentaria a margem de lucro dos produtores, embora os custos de produção não se alterem. No entanto, essa rede de inter-relações é complexa, já que consumo e produção podem ser realizadas pelo mesmo país, assim como o preço baixo pode impedir uma maior concorrência com outros países que não conseguem ter o mesmo empenho.

Os diferentes tipos de petróleo extraídos, a quantidade de reservas, a tecnologia empregada para sua extração e produção estão entre os diversos fatores que impactam os preços e a capacidade de determinado grupo econômico ou país para suportar uma queda ou alta com o objetivo de alcançar mais mercados. Se hoje os EUA estão entre os maiores produtores de petróleo (e também um dos maiores consumidores) por conta do Shale oil (petróleo não convencional, com uma tecnologia de extração a partir do faturamento hidráulico combinado com a perfuração horizontal), os custos mais elevados e a necessidade ainda de importar o produto impõem a intervenção global por seu controle em outras regiões.

O que podemos observar nessa disputa é o acompanhamento desse preço do barril do petróleo tipo Brent (uma forma de precificar em dólares o petróleo tendo como referência um conjunto de tipos de petróleo) de acordo com a conjuntura. Ao analisar uma série histórica que se inicia em 1861, o tipo Brent apresentou uma tendência de baixa até o choque do petróleo de 1973 (quando então ocorre a guerra entre Israel, Síria e Egito) girando em torno de US$ 27,00/barril (atualizado para os valores de 2018), evidenciando o poder das Sete Irmãs e dos EUA nessa manutenção.

De 1974 a 1985 o preço do barril apresentou uma média mais elevada em torno de US$ 75,00/barril, com um pico em 1980 ao preço de US$ 112,24/barril, logo após o segundo choque do petróleo (1979) por conta da revolução iraniana e o esgotamento de um ciclo de acumulação capitalista. Dois acontecimentos fortemente influenciados pela presença da OPEP, que embora tenha surgida em 1960, é a partir da década de 70 que ela reforça sua intervenção no mercado mundial.

Entre 1986 a 2003 a média cai para US$ 33,50/barril, com pequenas variações entre os anos. E no período que vai de 2004 até 2014 a média foi de US$ 94,00/barril, com um pico em 2011 ao preço de US$ 124,20/barril, apresentando a importância de novos atores, como o Brasil, em um momento de valorização do preço do produto. No último período, entre 2015 e 2018, o preço médio foi de US$ 57,02/barril, uma queda de 39,4% em relação ao período anterior, quando a economia mundial, sob a crise iniciada em 2008, vive um longo intervalo de estagnação geral e recessão em algumas regiões, além da intensificação da chamada guerras comerciais impulsionadas pelo presidente dos EUA, Donald Trump. Desde 1974 até 2018 seu preço apresentou uma média de US$ 53,50/barril, bem acima do período anterior.

As disputas e acordos tem organizado os principais atores em grupos de interesse e necessidades. De um lado há os países da OPEP, Rússia, México e mais onze produtores, que mesmo com suas contradições tem se conformado como um bloco nas definições políticas e econômicas da produção (chamado de OPEP+). Do outro, encontram-se as “Sete Irmãs” e o crescimento do que tem sido chamado de América+2 (EUA, Brasil, Canadá, Colômbia, Inglaterra e Noruega), que vem ampliando sua participação global, como afirma Rodrigo Leão. A participação desse último bloco representava 21% na produção mundial desde o início de sua criação, em 1977. Em 2008 essa produção cresceu para 28%, e a projeção é que chegue a 34% em 2025, ante 44% da OPEP+.

O petróleo e o CoronaChoque

As perspectivas do final de 2019 para a produção e consumo do petróleo eram de crescimento, segundo Nota Técnica da Empresa de Pesquisa Energética com projeções de longo prazo, indicando um preço médio de US$ 70/barril em 2020, com indicativo de crescimento nas próximas décadas até atingir US$90/barril, em 2050. A chave para essas projeções era a expectativa do crescimento da demanda mundial, sendo que a contenção dos preços abaixo de US$ 100/barril seria uma necessidade dos ofertantes para não inviabilizar o consumo, ao mesmo tempo em que inviabilizariam novos produtores com custos mais caros a entrarem na produção.

Contudo, antes mesmo do choque da pandemia do Covid-19, a maioria das análises do mercado pouco se debruçavam sobre os processos geopolíticos que vinham se intensificando desde 2008. O único elemento levado em conta era a guerra comercial entre EUA e China, responsável por pressionar o preço do petróleo para US$66,00/barril no ano de 2019, segundo analistas. Mas com o acordo comercial assinado em janeiro 2020, esse processo tenderia a ser amenizado.

O assassinato do general iraniano Soleimani pelos EUA no início deste ano retiraram o véu de otimismo propagado. Em 2018, quando foi anunciado as sanções ao Irã pelos EUA, o PIB do país iraniano caiu 4,8%, e a previsão do FMI para o ano de 2019 era de uma queda de 9,5%. Embora o assassinato não tenha tido tanto impacto nos preços e na produção do petróleo, com oscilações especulativas dentro da “normalidade” no mercado financeiro, ele representou a dura realidade da imposição da luta pelo controle da commoditie, acendendo a luz de alerta de que o mundo ainda não estaria na tão sonhada paz e em crescimento.

O surto da epidemia do Covid-19 instalado na China em janeiro de 2020 e as medidas de isolamento social impostas pelo país atingem diretamente sua produção e consumo interno. A paralisação de atividades produtivas na China impacta também a produção em outros países, dada a internacionalização produtiva e o papel do país asiático no mundo, ao responder por 20% do fornecimento mundial de peças e componentes. Desde então, a demanda do maior importador de petróleo do mundo caiu 20%, podendo diminuir em mais 25% segundo o setor de energia chinês, aumentando as projeções de queda da produção e consumo mundial.

Esses resultados impactam as projeções no consumo do petróleo no curto e médio prazo. Com a incapacidade de resposta rápida em reduzir ou conter a produção mundial dos principais produtores, o preço esperado para o barril do petróleo inicia uma queda contínua no mercado financeiro. Além disso, as ações das principais empresas do petróleo também caem, já que elas sofrerão uma forte pressão pela escassez da demanda. No entanto, muito das movimentações no mercado financeiro têm reações mais especulativas, com efeitos manadas e pânicos irracionais no curtíssimo prazo. A tendência é que a queda dos preços do petróleo futuro se consolidem no momento em que os indicadores da economia real apresentarem os resultados esperados. O mês de janeiro fechou o preço do petróleo em US$ 56,65/barril e fevereiro em US$ 49,98/barril.

Outro movimento importante foi a guerra de preços iniciada entre a Arábia Saudita (enquanto liderança da OPEP) e a Rússia, no início de março. Na ocasião, a Arábia Saudita havia proposto à Rússia um acordo pela redução da produção do petróleo com o objetivo de manter o preço em um patamar ideal para ambas, já que a demanda mundial estava diminuindo. Com a negativa da Rússia, a Arábia Saudita reduziu os preços do petróleo e anunciou o aumento da produção, ampliando ainda mais o excedente mundial da commoditie, com a intenção de ganhar o mercado russo. Esse movimento impactou novamente o mercado financeiro, com uma queda em 22% do preço do petróleo no dia seguinte ao anúncio.

O terceiro elemento dessa conjuntura, e que tem sido a variável exógena – que não tem relação direta com as leis econômicas observadas – foi o anúncio da OMS no dia 11 de março (na mesma semana que iniciou a guerra dos preços do petróleo) sobre a pandemia do Covid-19. O mercado financeiro, que se mantinha instável desde o início do ano, vivenciou outro momento de pânico com as expectativas de mais uma crise global, com paradas generalizadas da produção e consumo nos diversos setores da sociedade. Dessa vez, a queda não foi apenas do preço do petróleo, mas das demais ações de diversas empresas na corrida por ativos com maior liquidez e com menores riscos, como os títulos públicos dos EUA e o dólar. O preço do petróleo encerrou o mês de março em US$ 25,88/barril.

Os próximos passos desses movimentos no CoroChoque

É certo afirmar que nas próximas semanas os indicadores e projeções futuras para a economia, em especial à produção e preços do petróleo, só apontarão para mais quedas e incertezas, devido a falta de conhecimento sobre o fim da pandemia. O consumo de petróleo no mundo tem caído entre 20 e 30 milhões de barris por dia; antes da crise o consumo era de 100 milhões de barris por dia. O aumento dos excedentes da produção crescem enquanto diminuem a capacidade de estocá-los. A impossibilidade de parar a produção por provocar uma despressurização nos campos mais antigos, inviabilizando sua retomada, é um entre tantos desafios que os produtores de petróleo enfrentam.

O cenário geopolítico também se mantém em aberto em torno do petróleo. A queda do preço atinge a dinâmica dos blocos e dos principais países e empresas produtoras. Boa parte das previsões de investimentos para o curto e médio prazo foram cortadas, bem como a preservação de caixa, sinalizado pelas gigantes do setor como ExxonMobil, Total, Equinor e BP, além da Petrobras.

O acordo entre os países da OPEP+ foi acertado e tem como objetivo conter o poder do continente americano no setor. Ao contrário da esperada queda da produção em torno de 15 milhões de barris de petróleo por dia, o acordo foi de 10 bilhões, como uma forma de pressionar o bloco America+2 de também reduzir a produção, o que por hora inundará o mundo do produto a um preço baixíssimo. Antes da reunião de fechamento do acordo, a China comprou da Arábia Saudita um valor considerável de petróleo para estocar e assinou um contrato com o país e a sua estatal CPECC para o desenvolvimento do campo de petróleo no Irã. Isso mostra que a OPEP+ está disposta a impedir o avanço da América+2.

Do outro lado, o preço do petróleo dos EUA negociado em Nova Iorque (de tipo WTI, que é diferente do tipo Brent) apresentou uma queda especulativa no mercado financeiro de mais de 300%, fechando com um valor negativo de US$ 37,63, algo nunca visto antes. Essa movimentação se deu pelo vencimento dos contratos desse tipo de petróleo da produção futura de maio. A corrida pela venda desses títulos antes do vencimento, já que não havia expectativa da produção, levou a essa queda fenomenal. O aumento elevado dos estoques do produto em mais de 48% no principal centro de armazenamento do petróleo dos EUA (cidade de Cushing/Oklahoma) também contribuiu nesse processo. Trata-se de um ciclo vicioso em que a economia real influi no mercado financeiro, enquanto este amplia as perdas para o primeiro.

Não há condições de determinar os vencedores, mas a disputa é acirrada. Ainda que o petróleo dos EUA (Shale oil) seja mais caro para a produção, podendo levar a uma onda de quebra das empresas, pode existir uma onda de concentração e proteção dos EUA a esse setor, por seu papel geopolítico. A OPEP+ tem avançado em seus movimentos na crise e não indicam recuos no momento, mesmo com o preço baixíssimo. O jogo está em aberto, e o controle da produção e preço do petróleo é apenas um dos instrumentos para a manutenção do poder geopolítico e controle deste recurso natural.

* André Cardoso é economista e coordenador do escritório Brasil do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.