Nos últimos meses foi intensificada uma disputa entre os grandes sojicultores da região amazônica e as empresas exportadoras de grãos, as chamadas trandings graneleiras transnacionais. A disputa gira entorno da moratória da soja no bioma Amazônia, para garantir os mercados internacionais dos grãos, principalmente o mercado europeu. As empresas exportadoras defendem a manutenção da moratória, o que representaria um “certificado de sustentabilidade”. Por outro lado, os produtores de soja criticam o acordo que, segundo eles, seria muito restritivo em relação à possibilidade de ampliar o desmatamento em propriedades rurais localizados no bioma Amazônia.

O que é a moratória da soja?

A moratória da soja foi um acordo realizado em 24 de julho de 2006 entre as empresas processadoras e exportadoras do grão ligadas à Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (ABIOVE) e a Associação Brasileira dos Exportadores de Cereais (ANEC), com organizações da sociedade civil, como a Conservação Internacional, Greenpeace, IPAM, Imaflora, TNC e WWF-Brasil. O objetivo é inibir o plantio de soja no bioma Amazônia em áreas desmatadas a partir de 22 de julho de 2008, referência do Código Florestal.

O acordo utiliza os dados de desmatamento fornecidos pelo Programa de Cálculo do Desflorestamento na Amazônia Brasileira (PRODES) e as bases de dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

Segundo dados da ABIOVE, foram identificados 1.384 hectares com plantio de soja em áreas desmatadas na safra 2008/2009. Já na safra seguinte, a área com plantio desse grão aumentou para 6.295 hectares. Em 2010/2011 saltou para 11.698 hectares, e na safra 2011/2012 foi identificado 18.410 hectares com plantio do grão em área desmatada.

Ou seja, mesmo com o instrumento da moratória, verifica-se uma tendência de elevação do plantio de soja em áreas de desmatamento na região Amazônica. Os dados da última safra apontam para 64.338 hectares de soja plantada em áreas de desmatamento.

O acordo da moratória da soja na Amazônia define que as empresas não comercializem e não financiem o grão de fazendas embargadas por abertura de novas áreas no bioma após 2008. Na safra 2017/2018 a produção de soja no bioma cobriu 4,66 milhões de hectares, o que representa 13,3% do total nacional, que foi de 35,1 milhões de hectares. Estima-se que 2% da produção do grão na Amazônia estavam em áreas irregulares, segundo o acordo.

O grupo de trabalho monitora atualmente 95 municípios em 4 estados da região: Mato Grosso, Pará, Rondônia e Maranhão. Na safra 2017/2018 foram verificados 1.393.633 hectares desmatados nestes estados, sendo que 64.316 hectares destas novas áreas foram utilizados para o plantio de soja.

Mato Grosso apresentou 49.013 hectares (76,2%) de produção de soja em desconformidade com a moratória, se tornando o estado que mais descumpriu o acordo, seguido do Pará, com 10.133 hectares (15,8%), Maranhão, com 3.160 hectares (4,9%), e Rondônia, com 1.928 hectares (3%).

Contradições no “pacto”

Na esteira do discurso antiambiental do governo Bolsonaro e da ampliação do desmatamento e queimadas no bioma Amazônico, a Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja) vem afirmando que estuda entrar com uma denúncia no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) contra as trandings para anular o acordo que deu origem a moratória da soja.

O governo Bolsonaro, por meio da ministra da Agricultura Tereza Cristina, tem demostrado apoio aos produtores. Segundo o argumento da Aprosoja, a moratória da soja seria mais exigente em termos de preservação da floresta que o Código Florestal brasileiro, que possibilita desmatar no máximo 20% da área, sendo obrigatório a manutenção da vegetação nativa no restante da propriedade.

O posicionamento do atual governo tem sido efetivamente de apoio ao desmatamento, seja no discurso e principalmente nas decisões administrativas da gestão, como no desmonte da política de proteção ambiental, como demonstrado na Nota 1 do Observatório da Questão Agrária.

Essa mesma política e discurso também é reforçado pelos representantes do agronegócio no país, como o posicionamento da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) na 25º Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 25). A entidade defendeu a rejeição da resolução que indicaria a meta de desmatamento zero, e defende a abertura de novas áreas para a produção agropecuária.

Os defensores do acordo que gerou a moratória da soja argumentam que essa política foi uma das responsáveis diretas na redução do desmatamento no bioma amazônia. Entretanto, é importante notar que embora a moratória possa ter o potencial de frear um dos vetores do desmatamento, ela não necessariamente impede a expansão da sojicultura na região.

Estudo publicado em 2017 pelo site Outras Palavras aponta que a moratória da soja impede diretamente novos desmatamentos para o plantio de soja, mas indiretamente pode ter influenciado a expansão do desmatamento de novas áreas, na medida em que a produção de soja avança sobre áreas que eram utilizadas como pastagens. A pecuária, por sua vez, se desloca para a abertura de novas áreas.

Contraditoriamente, as mesmas empresas que defendem a moratória da soja na Amazônia adquirem e muitas vezes financiam a expansão da cultura no Cerrado, que não é coberto pelo acordo que originou a moratória da soja na Amazônia.

De certa forma, o acordo fortalece o mito de que o agronegócio brasileiro zela pela sustentabilidade, em especial o compromisso ambiental das grandes empresas transnacionais da cadeia dos grãos, como Bunge e Cargill. Porém, esse mito escamoteia as grandes contradições presentes na questão agrária brasileira, já que o aumento da cultura da soja no país é baseado mais na expansão de novas áreas do que no aumento de sua produtividade, como demonstramos na Nota 3 deste observatório. Esta expansão muitas vezes se dá em territórios de comunidades indígenas e tradicionais, algo que a moratória da soja não tem nada a dizer.

O modelo de produção presente na soja implica em um padrão de destruição do meio ambiente, com o uso intensivo de agrotóxicos que contaminam as terras, a água, a biodiversidade e os seres humanos.

O desmatamento na Amazônia está intimamente vinculado aos processos de grilagem de terras, agora praticamente regulado pelo mais novo “programa social” do governo Bolsonaro para os ruralistas, a MP da regularização fundiária (MP nº 910, de 2019), publicada em 11 de dezembro deste ano. A medida provisória possibilita a regularização por auto declaração e sem a necessidade de comprovar a posse de terras ocupadas irregularmente em até 2.500 hectares, regularizando a grilagem de terras em todo o território nacional, com grande incidência na região Amazônica.

A pressão do ruralismo brasileiro para abrir mão desta suposta amarra da expansão da soja no bioma Amazônia, vinculado com as medidas que o atual governo tem adotado de desmonte das estruturas de proteção e fiscalização ambiental, o discurso beligerante do presidente e de membros do alto escalão do governo federal, demostram que o desenvolvimento do agronegócio no país se baseia em uma articulação entre desmatamento, grilagem e violência no campo.

A moratória da soja no bioma Amazônia tem cumprido a função de buscar reduzir – em que pese a tendência de aumento da produção de soja em áreas de desmatamento – um dos vetores que levam à destruição da floresta. Tal política, entretanto, é insuficiente em atacar o principal fator da destruição da floresta e dos recursos naturais, que é o padrão de desenvolvimento do agronegócio no Brasil. Além disso, a forma como esse acordo é propagandeado pelas grandes empresas transnacionais dos grãos esconde, sob uma aparente sustentabilidade, aquilo que a cadeia da soja de fato é: fator de concentração de terra, conflitos territoriais, uso intensivo de agrotóxicos e desmatamento.