Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Em 26 de abril de 1937, doze bombardeiros da Legião Condor alemã e da Aviazione Legionaria italiana sobrevoaram o País Basco. Eles destruíram a pequena cidade de Guernica, sobre a qual despejaram seu arsenal de fogo. Quase duas mil pessoas morreram nessa cidade indefesa. Noel Monk, do Daily Express (Londres), foi um dos primeiros repórteres a entrar na cidade, horas depois de os bombardeiros terem se retirado. Em Eyewitness (1955), Monk escreveu: “uma visão que me assombrou por semanas foram os corpos carbonizados de várias mulheres e crianças reunidas no que havia sido o porão de uma casa. Era um refúgio”. Pablo Picasso, o artista, ficou tão comovido com as notícias do bombardeio fascista que pintou sua obra mais poderosa – Guernica (1937) – hoje pendurada nas paredes do Museu Reina Sofia, em Madri.

Na entrada do Conselho de Segurança das Nações Unidas, na cidade de Nova York, está pendurada uma tapeçaria de Guernica feita pela tecelã Jacqueline de la Baume Dürrbach, em 1955. Quando o Secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, foi à ONU no início de 2003 para fazer falsas afirmações sobre as armas de destruição em massa no Iraque, a equipe da ONU cobriu a obra com um pano azul. Em 1923, Picasso disse a Marius de Zayas que “a arte é uma mentira que nos faz perceber a verdade”. As mentiras que levaram à guerra no Iraque não poderiam ser contadas com Guernica como pano de fundo.

Mentiras levam à guerra e mais mentiras são necessárias para encobrir os horrores da guerra. Nos últimos anos, o Tribunal Penal Internacional (TPI) começou a investigar cuidadosamente os crimes de guerra no Afeganistão realizados pelas forças armadas dos Estados Unidos, do Afeganistão e do Talibã. O procurador especial do TPI, Fatou Bensouda, estava convencido de que há provas suficientes para o Tribunal levar adiante a investigação (incluindo evidências fornecidas pelo Wikileaks de várias investigações secretas do Exército dos EUA). Mas a administração Trump, no melhor estilo mafioso, colocou uma imensa pressão sobre o TPI. Primeiro, o assessor de segurança nacional dos EUA, John Bolton, ameaçou sancionar juízes e advogados no Tribunal e o então secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, negou a Bensouda um visto para ir a Nova York entregar seu relatório ao Conselho de Segurança da ONU. Em 12 de abril, portanto, uma comissão prejulgamento do TPI decidiu interromper a investigação. Disseram que investigar os crimes de guerra no Afeganistão “não serviria aos interesses da justiça” (para saber mais sobre isso, leia meu relatório).

Tornou-se impossível responsabilizar os Estados. O TPI não consegue se posicionar diante de países poderosos, como os Estados Unidos e seus aliados (especialmente Israel). Não resta nenhuma alternativa às vítimas das guerras permanentes. Elas podem se manifestar em busca de justiça, mas receberão pouca atenção. Em 2011, o filho de Haji Bismillah foi morto por um ataque de helicóptero dos EUA em Nangalam (Afeganistão). “A cabeça do meu filho Wahidullah estava perdida”, disse ele com grande tristeza. “Eu o reconheci  apenas por suas roupas”.

Os gastos militares globais são superiores a 2 trilhões de dólares, com os Estados Unidos gastando quase metade desse valor. O total de gastos militares estadunidenses está agora em 989 bilhões de dólares. Esse número inclui não apenas os gastos formais com os militares, mas também os gastos com a Administração dos Veteranos, o Departamento de Energia, a Administração Nacional de Segurança Nuclear, o órgão de Segurança Cibernética do Departamento de Justiça, Segurança Interna e os aspectos militares do Departamento de Estado. Não inclui o imenso orçamento secreto da Agência Nacional de Segurança (NSA, sigla em inglês) e a Agência Central de Inteligência (CIA, sigla em inglês). Some isso e o orçamento militar estadunidense já ultrapassou 1 trilhão, como descobriram nossos amigos da Monthly Review, em 2007. Os Estados Unidos têm um gasto militar superior aos outros nove países da lista dos que mais gastam, somados: China, Arábia Saudita, Rússia, Índia, França, Reino Unido, Japão, Alemanha e Coréia do Sul. “Segurança” ou “dissuasão” não são os principais objetivos de tais dispêndios de dinheiro. Um mundo repleto de armas leva à tragédia no Sri Lanka, onde explosivos foram usados ​​no terrível assassinato de mais de duzentos inocentes.

O foco na indústria de armas é esporádico, e o Instituto Internacional de Pesquisas para a Paz de Estocolmo (SIPRI) e outros similares sentem-se solitários em seus trabalhos. Relatórios recentes da instituição mostram que o volume de transferências de armas vem aumentando ao longo dos anos, com os Estados Unidos, Rússia, França, Alemanha e China como os maiores exportadores – representando, juntos, 75% de todas as vendas mundiais de armas. Os Estados Unidos, por si só, vendem 36% das armas do mundo – com foco em aeronaves de combate, mísseis de cruzeiro de curto alcance, mísseis balísticos e bombas guiadas. As dez maiores empresas bélicas do mundo são:

1.   Lockheed Martin (44.9 bilhões de dólares) [EUA]

2.   Boeing (26.9 bilhões de dólares) [EUA]

3.   Raytheon (23.9 bilhões de dólares) [EUA]

4.   BAE Systems (22.9 bilhões de dólares) [EUA]

5.   Northrop Grumman (22.4 bilhões de dólares) [EUA]

6.   General Dynamics (19.5 bilhões de dólares) [EUA]

7.   Airbus Group (11.3 bilhões de dólares) [Europa]

8.   Thales (9 bilhões de dólares) [França]

9.   Leonardo (8.9 bilhões de dólares) [Itália]

10. Almaz-Antey (8.6 bilhões de dólares) [Rússia]

Por que os governos gastam uma quantia tão indecente em armas? Em seu monumental Grundrisse (1857), Karl Marx fez uma observação de improviso, mas precisa: “O impacto da guerra é autoevidente, pois do ponto de vista econômico é como o país deixar cair parte de seu capital no oceano”. Uma economia de guerra permanente é um desperdício, mesmo que grandes lucros sejam gerados por essas empresas de guerra. Tanto pode ser feito com 2 trilhões de dólares – meros 30 bilhões por ano acabariam com a fome mundial, como observou a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em 2008. No ano passado, a ONU iniciou uma campanha para arrecadar 10 bilhões de dólares para erradicar o analfabetismo, mas mesmo essas quantias modestas têm sido impossíveis de arrecadar, as promessas de “bilhões para trilhões” das muito divulgadas parcerias público-privadas tornam-se insignificantes. Há sempre dinheiro para a guerra, e nunca há dinheiro suficiente para construir os andaimes para a paz.

Há sempre a ilusão de que os gastos militares são para a segurança, quando na verdade parecem servir mais ao lucro. Toda a indústria é lubrificada com propinas. Joe Roeber, da Transparency International, afirma que o comércio de armas é “muito ligado à corrupção”. “Em 1997, me disseram em Washington que um relatório de meados dos anos 1990 da CIA concluiu que a corrupção no comércio de armas representava 40-45% da corrupção total no comércio mundial”, escreveu. O argumento da segurança nacional, sugeriu Roeber, “lança um véu de sigilo em torno das negociações de armas”, cuja escala é tão grande que até mesmo pequenas porcentagens de subornos representam grandes quantias. Propinas são normais, os acordos que são revelados são surpreendentes: vão de 300 milhões de dólares (o acordo África do Sul com a BAE, de 1997-98) a 8 bilhões de dólares (o acordo entre a Arábia Saudita e a BAE, de 1985 a 2007).

 

Há alguns dias, me juntei a um grupo de iraquianos, como a escritora Haifa Zangana, e jornalistas que cobriram a guerra no Iraque e aqueles que lideraram campanhas de solidariedade aos iraquianos, na assinatura da seguinte nota:

Obrigado Julian Assange.

Obrigado, Chelsea Manning,

Por expor violações de direitos humanos, a criminalidade e os horrores da guerra dos EUA contra o Iraque. Pelo Wikileaks, que nos disse a verdade sobre o que estava realmente acontecendo. Por nos fornecer registros da Guerra do Iraque que nos ajudarão, em um futuro próximo, a responsabilizar aqueles que iniciaram a guerra no Iraque como criminosos de guerra.

Nós tínhamos em mente o terrível bombardeio da sociedade e civilização iraquianas. Nós tínhamos em mente Chelsea Manning, sentada em uma cela de prisão, recusando-se a testemunhar contra Julian Assange. Nós tínhamos em mente Julian Assange, que está na prisão de Belmarsh, a 20 quilômetros da sede da BAE (principal revendedora de armas da Grã-Bretanha).

Tínhamos em mente Ola Bini, que está na prisão El Inca, em Quito (Equador), que não teve nenhum papel nisso tudo, mas parece ser um dano colateral, para a frustração das elites dominantes, que suas mentiras tenham sido reveladas pelos vazamentos de documentos e registros das guerras no Afeganistão e no Iraque.

Não é o que está nesses documentos o que incomoda os poderosos, cuja indignação está reservada a pessoas corajosas que expuseram seus crimes e os chamam para a responsabilidade. Um oficial da Gestapo invadiu o apartamento de Picasso em Paris. Havia uma fotografia de Guernica na parede. O oficial da Gestapo perguntou se Picasso havia feito a pintura. “Não”, Picasso respondeu. “Você fez”.

Cordialmente, Vijay.