Eria Sane Nsubuga, Abeekalakasa temwesembereza mmundu (Evite armas quando estiver em lugares públicos), 2014.
                                                Segunda-feira, 26 de Agosto de 2019 

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Quando estive recentemente no Brasil, dei uma entrevista ao Brasil de Fato, que nasceu como um jornal semanal, em 2003, lançado no Fórum Social Mundial. É hoje uma das principais portas de entrada ao mundo político brasileiro. A carta semanal desta semana traz parte da entrevista.

Brasil de Fato: A primeira pergunta é sobre a imagem do governo de Jair Bolsonaro no mundo. Você viaja bastante, é jornalista. Como a imprensa internacional tem visto o fenômeno Bolsonaro? Que aspectos do governo dele são os mais comentados?

Vijay Prashad: A primeira coisa que acredito que devemos analisar com seriedade é que pessoas como Bolsonaro são consideradas um tanto cômicas. Desenvolveu-se uma narrativa sobre a natureza cômica dos chefes de governo contemporâneo. Boris Johnson, Donald Trump, Bolsonaro fazem parte dessa galeria de personagens cômicos.

Dossiê nº14 – Amazônia Brasileira: A Pobreza do Homem como resultado da Riqueza da Terra.
Mas uma coisa deixa as pessoas alarmadas. Não só os liberais, mas os outros também. Existem dois grandes depósitos de carbono no mundo. Um fica na ilha de Papua, tanto na Papua Ocidental quanto na Papua-Nova Guiné. O outro é a Amazônia. E acho que as pessoas ficam bem assustadas com o fato de Bolsonaro decidir abrir a Amazônia para a indústria madeireira e outras. Ele basicamente permitiu que o lobby da indústria de alimentos e da madeira criassem políticas. Sei que até mesmo um jornal como o New York Times publicou uma matéria bem forte sobre a política de Bolsonaro para a Amazônia. Acho que existe aí alguma preocupação. Uma coisa é dizer que Bolsonaro é cômico e tem uma posição péssima com relação a questões sociais ou à ditadura. Mas quando se começa a destruir a Amazônia, isso tem implicações para todo o planeta.Essa é uma grande preocupação para pessoas decentes e sensíveis – e até para aquelas que não são tão sensíveis assim.
Dimosthenis Kokkinidis, “E em relação à lembrança dos males”, Julho de 1967.
Na última década, nos acostumamos a ouvir no noticiário o termo BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul]. Esses países começaram a se articular e a ameaçar a hegemonia dos Estados Unidos no cenário internacional. É possível dizer que a eleição de Bolsonaro, um presidente tão próximo de Trump, pode desmantelar essa organização? Ou isso já estava acontecendo antes dele?

A primeira questão é que nunca devemos exagerar o sentido de alguns países se unirem para criar algum tipo de grupo. O BRICS sempre acompanhará o caráter de classe dos governos dos diferentes Estados.

Antes do BRICS, Índia, Brasil e África do Sul formaram um bloco, chamava-se Ibas. Ele ainda existe. Na época, os governos da Índia, do Brasil e da África do Sul eram relativamente social-democratas e defendiam uma pauta por subsídios para medicamentos e a agricultura. Havia uma preocupação com a falta de acesso da população a remédios e com o impacto negativo das políticas comerciais sobre os agricultores. Na época, eram sociais-democratas, a partir de 2003, quando o Ibas nasceu.

Quando o BRICS foi criado, em 2009, já tinha uma agenda mais contraditória, com pelo menos três pautas. Uma delas já vinha do próprio Ibas: lutar por acordos comerciais melhores e proteger os agricultores. Mas as outras duas são importantes. A segunda foi a defesa do multilateralismo, mas não era uma proposta socialista. Simplesmente significava que as elites do Brasil, da Rússia, da África do Sul, da China e da Índia deveriam ter um lugar à mesa. O terceiro objetivo era a cooperação comercial Sul-Sul. Negócios indianos com brasileiros, exportações brasileiras para a África do Sul e assim por diante.

O BRICS sempre foi limitado pelo caráter de classe dos governos. E vai continuar assim, porque ele é importante. As empresas do Brasil querem entrar no mercado indiano. Então, o BRICS não vai se dissolver. As pessoas acham que o BRICS é um instrumento político, com aquela ideia do multilateralismo. Mas essa é uma abordagem bastante equivocada com relação ao BRICS. Ele não é simplesmente um instrumento político. Ele trata da questão comercial, militar, de armamento, de todo tipo de coisa, nesta parte do mundo. Não são coisas que eu e você acharemos boas.

A diferença entre o fascismo de ontem e o neofascismo de hoje
O avanço da extrema direita em diferentes regiões impôs um interessante debate sobre o uso do termo “fascismo”. Há teóricos que dizem que o fascismo ocorreu na Itália em um contexto específico do século XX e não pode ser comparado a nenhum outro governo ou regime. Outros analistas dizem que as semelhanças são tão grandes que é impossível chamá-las por qualquer outro nome. Como você se posiciona nesta discussão? Devemos chamá-los de fascistas ou não? Ou não devemos nos preocupar com esses termos agora?

Esses debates são importantes. A questão não é chegar à análise correta sozinho. A questão é promover um debate para esclarecer como entendemos a conjuntura atual. Nós voltamos nosso olhar para os anos 1920 e 1930 para entender o que foi o autoritarismo dentro da democracia. Como ele se expressava naquela época? Porque, afinal, [Benito] Mussolini e [Adolf] Hitler chegaram ao poder através da democracia, pelas urnas, e aprofundaram o papel autoritário da política na sociedade.

Mas o contexto que produziu Hitler e Mussolini, os fascistas e os nazistas, era muito diferente do contexto atual. Na época, a tarefa principal dada a eles pelos capitalistas e pela burguesia era chegar ao poder e acabar com o movimento de trabalhadores. Essa era a tarefa principal dos fascistas e nazistas clássicos do início do século 20. Hoje, os movimentos de trabalhadores estão muito mais enfraquecidos. A tarefa dada pela burguesia não foi: “Opa, fascista. Volte ao poder e destrua o movimento de trabalhadores.” Não é a mesma situação. É equivocado usar analogias para fundamentar o argumento de que hoje temos líderes que dão declarações terríveis, que querem prender jornalistas, alegando que é parecido e, portanto, igual. Não. Vamos olhar para a conjuntura atual pelo que ela é.

Desde o período neoliberal, a política neoliberal teve dois efeitos. Um foi enfraquecer muito o poder de organização dos camponeses e trabalhadores de todas as categorias. Não foi só o poder de barganha deles que diminuiu. A própria capacidade de se organizar diminuiu. Na minha opinião, isso é muito importante.

Os sindicatos perderam força. Isso criou uma situação explosiva em que a burguesia enriqueceu cada vez mais nesse período. Thomas Piketty apresentou dados que comprovam o que já sabíamos: existe uma desigualdade imensa. A burguesia temia que o aumento da desigualdade levasse ao potencial de convulsão social. Nós vimos revoltas irromperem, por comida, o “Caracazo” na Venezuela. Levantes foram feitos contra as elites.

Nesse momento, observa-se a intensificação da guinada à ideologia de direita. A elite começa a perseguir determinadas populações, feministas, minorias, refugiados, migrantes, e começar a culpá-los. “Você não tem emprego por causa dos migrantes.” Foram os neoliberais que introduziram essas ideias no discurso político para manter o controle do sistema.

Mas os neoliberais se esgotaram. Todo mundo sabe que eles foram os responsáveis pela desigualdade e pela degradação. E foi nesse momento, com a esquerda muito enfraquecida, que a extrema direita, a direita autoritária aparece e se apropria do que os neoliberais introduziram. Os neoliberais diziam que não se podia permitir migração demais porque era uma ameaça aos empregos. A extrema direita pegou essa narrativa e levou ao extremo, a uma perversidade terrível, e chegou ao poder.

Meu entendimento sobre o crescimento desses neoautoritários e neofascistas é que eles não representam o fascismo convencional do século 20. Na verdade, existe uma grande diferença. Eles não precisam destruir as instituições da democracia, mas simplesmente esvaziá-las. Ainda existem eleições, parlamentos e tudo mais. Eles não precisam de uma ditadura, porque esvaziaram o conceito de democracia. Por vias autoritárias e ideológicas, esvaziam a democracia, a imprensa, a capacidade de discussão das pessoas, e é assim que criam essa perversidade de extrema direita.

É diferente do que aconteceu no início do século 20. Temos que aprender com aquele momento para aprimorar nossa análise, mas precisamos também de uma análise das condições concretas do período atual.

Dossiê nº 18 – A única resposta é mobilizar os trabalhadores e trabalhadoras.
dossiê publicado em julho pelo Instituto Tricontinental mostrou que a informalidade atinge cerca de 90% dos trabalhadores na Índia. O índice de sindicalização também é muito baixo. Aqui no Brasil, os sindicatos foram alvo de vários ataques pelos últimos dois presidentes. É possível pensar em organizar os trabalhadores fora dos sindicatos? Quero dizer, existe alternativa para além dessa estrutura formal de organização?

O objetivo da sindicalização e da construção dos sindicatos não é construir o sindicato. A questão de toda essa luta é construir a confiança e a capacidade dos trabalhadores e camponeses. O objetivo não é existir o sindicato, mas ter uma classe trabalhadora e camponesa organizada que possa desafiar a burguesia politicamente. Essa é a questão. O sindicato por si só não é suficiente.

Entendemos a importância dos sindicatos, mas esse não é o objetivo. Os sindicatos são simplesmente uma forma de fortalecer o poder da classe trabalhadora. Os sindicatos entenderam que está cada vez mais difícil organizar os trabalhadores na ponta da produção. As fábricas viraram quase prisões. Está muito difícil se organizar nelas. A jornada de trabalho está tão rígida que parece um quartel. Não pode ir ao banheiro, não pode levantar a cabeça, não pode conversar. Parece uma cadeia. As fábricas contemporâneas têm uma construção muito cruel para a hiperprodutividade.

Por causa dessa dificuldade, os sindicatos começaram a pensar: “Vamos organizar os trabalhadores no lugar onde eles moram.” Porque a grande questão é organizar os trabalhadores. Ao conseguir fazer isso no lugar onde eles moram, é possível levar a luta para a fábrica. Então os sindicatos passaram a pensar de forma muito criativa para construir o poder dos trabalhadores. É para isso que precisamos olhar, para as oportunidades de construir o poder dos trabalhadores e camponeses.

Obviamente, o local da produção é importante, a indústria, o agronegócio. Mas se você conseguir organizá-los em outro lugar, se houver confiança em outro lugar, se eles construírem a própria força em outro lugar, eles levarão essa experiência diretamente para a fábrica. Então os sindicatos estão fazendo novos experimentos. Por isso estamos interessados em entender o que eles estão fazendo e onde.

Dossiê nº 17 – Venezuela e as Guerras Híbridas na América Latina.
O que está ficando cada vez mais claro é o conceito de guerra híbrida. Existe uma guerra híbrida em curso no planeta. Esse é um conceito que queremos reforçar muito em todo o mundo. As pessoas precisam entender que existe uma batalha contra a democracia.

Eu visitei a vigília [Lula Livre] em Curitiba no domingo [4], e me pediram para fazer uma fala. Eu falei que a democracia está presa. Lula é um ser humano. Lula liderou um governo quando havia uma certa correlação de forças entre as classes. A questão não é se você gosta ou não gosta do Lula. Essa discussão é ridícula. A questão real é que a ofensiva contra o direito de Lula concorrer à presidência foi um ataque à democracia. É isso que precisamos entender e explicar à população.

Isso está acontecendo em todo o mundo. Os processos democráticos estão essencialmente sendo destruídos a serviço de se ter uma forma muito limitada de governo de elite contra o povo. Essa é a questão primordial.

Cordialmente, Vijay.

PS: nossas cartas semanais agora estão em grego e tâmil (além de inglês, francês, alemão, russo e espanhol). Se quiser traduzi-la para outro idioma, entre em contato com a gente.