Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Na quarta-feira, dia 23 de janeiro, a oligarquia venezuelana – apoiada pelos Estados Unidos e seus aliados no continente – tentou uma mudança de regime na Venezuela. O presidente estadunidense, Donald Trump decidiu arbitrariamente consagrar um legislador do estado de Vargas como o novo presidente da Venezuela. A administração Trump pediu aos militares que conduzam um golpe. Isso é oposto das Constituições tanto das Nações Unidas como da Organização dos Estados Americanos (OEA). Até agora, os militares se mantiveram fiéis ao governo eleito da Venezuela. Por enquanto, a operação para uma mudança de regime foi frustrada. Mas isso não é o fim. Trump irá aumentar as sanções, aprofundando uma política para enfraquecer o Estado e levá-lo ao colapso. Isso é mudança de regime por estrangulamento. O povo venezuelano resistirá. As redes sociais, na Venezuela, se inundaram com a hashtag #MeDeclaro. Eu #MeDeclaro presidente da ONU, eu #MeDeclaro presidente dos EUA…

Em junho de 1931, o comunista Italiano Antônio Gramsci escreveu uma carta para Giulia Schucht, que vivia em Moscou e com quem teve dois filhos. Um deles – Delio – havia se interessado pela leitura, com um fascínio particular pela literatura de fantasia. Isso deu a Gramsci, trancado em uma prisão fascista, a oportunidade de relembrar uma história de sua aldeia na ilha da Sardenha.

Uma criança dorme com uma caneca de leite ao seu lado para quando acordar. Um rato bebe o leite, o que provoca um grito da criança e de sua mãe. “Em desespero, o rato bate a cabeça contra a parede, mas percebe que isso não o ajuda e então corre até a cabra para pegar leite”, escreve Gramsci. A cabra diz que lhe dará o leite se o rato lhe der grama, mas o campo está seco por causa de uma seca. Então, o rato vai buscar água na fonte, mas esta foi destruída pela guerra. Ele chama o pedreiro, que precisa de pedras, e então o rato se dirige para a montanha. Mas a montanha foi desflorestada por especuladores “e revela, em toda parte, seus ossos retirados da terra”.

O rato explica seu dilema à montanha e promete que quando a criança crescer – ao contrário do resto da humanidade – replantará as árvores, o que motiva a montanha a dar as pedras e assim a criança recebe seu leite. “Ele cresce, planta as árvores, tudo muda: os ossos da montanha desaparecem sob o novo húmus, as chuvas se tornam regulares porque as árvores absorvem os vapores e impedem as águas de devastarem as planícies etc.” Em suma, escreve Gramsci, “o rato concebe uma piatilietca (um plano de cinco anos) verdadeira e adequada”.

O que o rato e a montanha nos ensinam é que tudo está conectado. Há guerra aqui, mas também desmatamento por lucro, seca e ganância. A criança, quando crescida, reconhece a necessidade de um planejamento deliberado. Mas antes do plano é necessário identificar as conexões.

Salma Umar Khan, líder da comunidade transgênero de Mumbai (Índia), foi indicada no ano passado ao Painel Lok Adalat (Tribunal Popular), um órgão alternativo de mediação de conflitos, que permite que casos sejam resolvidos fora do sistema legal formal indiano. Salma dirige o Kinnar Maa Trust, que trabalha para melhorar a condição social e econômica da comunidade transgênero. Com 14 anos, Salma foi forçada a sair de casa. Ela conhece a pobreza e a discriminação e também a vulnerabilidade da população transgênero, cuja vida, à medida que envelhece, torna-se cada vez mais precária. Kinnar Maa Trust queria construir um abrigo para pessoas transexuais idosas. Um olhar para a comunidade transgênero nos faz ver rapidamente as consequências da misoginia e da homofobia, e também a indignidade da pobreza e as vulnerabilidades associadas à velhice. Não há um problema único aqui. Cada questão (transfobia, por exemplo) se transforma em outras questões – pobreza, fome, hierarquias sociais de todos os tipos.

Em 1949, a comunista de Trinidad e Tobago, Claudia Jones, escreveu sobre essas conexões em um artigo chamado Fim da negligência aos problemas da mulher negra! Jones escreve sobre a “opressão especial” vivida por mulheres de ascendência africana nos Estados Unidos, que carregam o peso do sistema nas costas. As mulheres negras, ela escreveu, devem ser entendidas como trabalhadoras, como mulheres e como afro-americanas – como “o estrato mais oprimido de toda a população”. A totalidade de suas experiências – de sua “opressão especial” – tinha que ser compreendida. Qualquer discussão sobre mulheres negras, Jones escreveu, inevitavelmente se abriria às conexões, às interseções entre os muitos aspectos da identidade delas.

O que fazer com os insights de Claudia Jones e a experiência de Salma Umar Khan? Como alguém muda o mundo depois de ter compreendido essas ideias? Algumas décadas atrás, a Associação de Mulheres Democráticas de Toda a Índia (AIDWA) surgiu com a teoria da organização intersetorial. Avaliando a opressão social e a exploração de classes, a AIDWA analisou as hierarquias da sociedade em “setores”. Há momentos em que as diferenças religiosas dividem as mulheres, outras vezes, a classe é o divisor. Brinda Karat, então líder da AIDWA, disse a Elisabeth Armstrong em seu livro sobre a AIDWA, Gênero e Neoliberalismo: a Associação de Mulheres Democráticas de Toda Índia e a Política de Globalização, que fazer uma “crítica leve” sobre o impacto da globalização sobre as mulheres “é injusto, por ignorar experiências muito mais sutis relacionadas aos diferentes níveis de crueldade e selvageria que esses processos geraram nas mulheres”. Por exemplo, mulheres de classe média tendem a querer que barracos e favelas sejam demolidos, enquanto mulheres que vivem nesses lugares não. As mulheres de classe média, organizadas pela AIDWA, teriam que subordinar seu interesse de classe ao interesse “setorial” das mulheres moradoras de favelas. O interesse setorial desses moradores teria primazia.

Alguns anos atrás, entrevistei mulheres e homens que vivem em jhuggis (favelas) de Déli. Perguntei a eles o que fariam se recebessem uma grande soma de dinheiro. Uma mulher disse que iria demolir todos os barracos em sua vizinhança, depois reconstruir prédios de vários andares naquela terra. Cada apartamento dos andares superiores teria quartos suficientes para dormir e para a interação familiar. Mas todas as cozinhas e banheiros seriam compartilhadas e estariam no térreo. “Devíamos ter as cozinhas e banheiros assim”, ela me disse com um grande sorriso no rosto, “para que as diferenças de casta e religião fossem desafiadas”. Essa jovem, que trabalhava em casas de ricos, era instintivamente “intersetorial” em seu pensamento.

Leia o dossiê nº12 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, que traz uma entrevista com Brinda Karat, na qual fala sobre as crises em cascatas na Índia, bem como sobre a natureza intersetorial das lutas. “A construção de lutas de resistência contra esse sistema de castas e sua opressão, e vincular essa batalha à luta contra o capitalismo em termos de disputas e objetivos, também é um desafio”, disse.

A Oxfam criou o hábito de apresentar um relatório brilhante sobre a desigualdade econômica pouco antes da elite mundial se reunir em Davos (Suíça) para o Fórum Econômico Mundial. O relatório deste ano é tão enlouquecedor quanto os dos anos anteriores. O principal dado é chocante: a riqueza de bilionários aumentou em 2,5 bilhões de dólares por dia, enquanto a riqueza de 3,8 bilhões de pessoas – metade da população do planeta – caiu 11%. Uma das afirmações principais do relatório é que “a desigualdade é sexista”; as mulheres vêm sofrendo o impacto da diminuição da divisão de riqueza nas últimas décadas. O relatório intersetorial da Oxfam aponta que, se o “trabalho de cuidado não remunerado feito por mulheres em todo o mundo fosse realizado por uma única empresa, teria um faturamento anual de 10 trilhões de dólares – 43 vezes o da Apple”.

Três recomendações vêm deste relatório: 1) acabar com a sub taxação dos ricos, 2) liberar o tempo das mulheres, aliviando as milhões de horas não pagas gastas com os cuidados de suas famílias e lares, e 3) garantir saúde, educação e outros bens e serviços públicos gratuitos. Estas são recomendações de senso comum que precisam de apoio público.

Na semana passada, o fotojornalista líbio Mohamed Ben Khalifa (35 anos) foi morto a tiros em mais um dos tiroteios enlouquecedores em Trípoli. Ele tirou uma sensível foto, ano passado, do corpo de um imigrante paquistanês, levado pela costa da Líbia. Aquele migrante, cuja vida foi dilacerada pelo tipo de desigualdade descrita no relatório da Oxfam, estava tentando chegar à Europa. Ele encontrou o caminho para as praias de Zuwarah e para o necrotério de Trípoli, onde Mohamed Ben Khalifa tirou sua foto. Mohamed deixa para trás sua esposa Lamia Jamal Abousahmen e sua filha de seis meses, Rayan.

Leia minha coluna sobre a atual crise da humanidade, onde os bilionários do mundo voam em jatos particulares para Davos, enquanto os mais vulneráveis do mundo afundam no fundo do mar Mediterrâneo. Há tanto a dizer e tão pouco.

Cordialmente, Vijay.

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