Paz, neoliberalismo e mudanças políticas na Colômbia

Dossiê n°23

National Indigenous March, May 2016

Marcha Nacional Indígena, maio de 2016, departamento de Cauca.
Equipe de Comunicação da Marcha Patriótica

A paz na Colômbia está na agenda política do continente há décadas. O movimento popular latino-americano testemunhou a aplicação de uma política internacional orientada pelos EUA por meio do Plano Colômbia e da instalação de sete bases militares estrangeiras em território colombiano. Também testemunhou os esforços para alcançar a paz em meio a intensas negociações. Para a Colômbia e para os povos de Nuestra América, a paz assume uma complexidade que põe em tensão o conjunto do cenário político e se constitui como um eixo central da disputa entre o neoliberalismo e as aspirações populares.

As forças da extrema direita ligadas ao modelo dominante de financeirização permanecem comprometidas em sustentar a guerra como um cenário vantajoso para seus interesses econômicos e sua perpetuação política. Assim, apesar dos esforços populares, o contexto atual é de crescente violência, marcado pelo assassinato de muitos líderes comunitários e sociais, e por um discurso oficial de permanente ataque à Venezuela bolivariana, sobre a qual são promovidas ações desestabilizadoras e uma retórica agressiva que, pelo menos no plano do discurso, anuncia a intervenção militar e uma possível guerra transfronteiriça.

No entanto, os resultados das eleições regionais e municipais, no final de outubro na Colômbia, significaram uma derrota para o atual governo do presidente Iván Duque. Nas principais cidades do país, o triunfo de diferentes forças da oposição sinalizou a queda da coalizão oficial, promovida pelo ex-presidente Uribe, que há quase um ano saiu vitoriosa nas eleições presidenciais, graças a um discurso bélico e crítico aos Acordos de Paz e negociações realizados pelo governo anterior.

Mais uma vez, o povo da Colômbia está na encruzilhada entre os tambores da guerra e a esperança da paz, uma tensão que tem uma história mais recente, mas está ancorada em um processo de longo prazo, relacionado a uma série de dimensões complexas. Este novo dossiê do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social se debruça sobre essa questão, no qual são examinadas as razões profundas e as atuais clivagens do contraste entre guerra e paz.

 

 

Mobilisation in Catatumbo

Mobilização em Catacumbo, departamento de Santander do Norte.
Associação Camponesa de Catatumbo – Ascamcat

 


O longo caminho da paz e da transformação social

As causas estruturais do conflito social, político e armado colombiano são, principalmente, a extrema desigualdade, a concentração de terras e os obstáculos à participação política. A Colômbia é o país mais desigual da América Latina quanto à distribuição de terras. De acordo com o censo agrícola nacional, 81% das terras estão nas mãos de 1% da população, enquanto 19% das propriedades estão com os 99% restantes, principalmente camponeses (Censo Agrícola, 2015). Essas condições de pobreza nas áreas rurais afetam mais as mulheres, que possuem apenas 26% do título de propriedade da terra e, na prática, não têm direito à saúde, moradia e educação. Segundo a Oxfam, um milhão de famílias rurais na Colômbia vive num espaço menor do que aquele que uma vaca precisa para se alimentar (Oxfam 2017).

O modelo econômico colombiano, focado no extrativismo – explorado pelas mineradoras multinacionais –, no agronegócio e na pecuária, é complementado por uma democracia nominal, usada para limitar a participação política do campo democrático e popular. A estigmatização, a perseguição e a eliminação de pessoas ligadas a correntes ideológicas de esquerda ou opositoras são hábitos do Estado, como demonstra o assassinato sistemático de líderes sociais (Indepaz, 2018).

Lideranças assassinadas na Colômbia em 2019

* O número de assassinatos em novembro (2019) continua aumentando.
Em 1o de outubro, 155 mortes haviam sido registradas, concentradas nas
mesmas áreas mostradas neste mapa.

A guerra fria, primeiro, e depois uma guerra híbrida, no contexto do Plano Colômbia, reforçaram a prática da eliminação física de organizações sociais, movimentos e partidos políticos, especialmente da esquerda. Nas décadas de 1980 e 1990, houve na Colômbia o genocídio político da União Patriótica – um partido que surgiu do primeiro acordo de paz entre o Estado e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em 1984 – que acabou com a vida de mais de 4 mil de seus militantes (Cepeda, 2006). Uma prática violenta que outros grupos populares sofrem continuamente até hoje. Em 2018, foram registradas 1.151 ameaças de morte, 648 assassinatos e 304 denúncias de lesões físicas e assédio (Cinep, 2019).

Nesse contexto, e obrigados por um crescente movimento popular pela paz, as Farc e o Estado concretizaram em 2016 um novo Acordo de Paz que, depois de quatro anos de negociações, contempla uma arquitetura organizada em seis pontos: 1) uma reforma rural integral; 2) a abertura democrática para a paz; 3) o fim do conflito; 4) luta contra as drogas ilícitas; 5) sistema de Verdade, Justiça e Reparação para as vítimas; 6) garantias para a implementação dos acordos (Acordo de Paz, 2016).

A reforma rural integral definida nos acordos cria um fundo de 3 milhões de hectares a ser concedido a camponeses, indígenas e afrodescendentes vítimas da pobreza. Para possibilitar seu uso, o acordo prevê a criação de programas de desenvolvimento com foco territorial, com a participação obrigatória das organizações rurais. Por outro lado, o acordo para a abertura democrática consagrou um “estatuto da oposição”, em que são contemplados garantias e direitos para o exercício da política, tanto de movimentos sociais quanto de organizações de base e partidos políticos. Há ainda dois subitens, ainda inacabados, que criam uma circunscrição eleitoral de paz, integrando 16 representantes do movimento popular ao Congresso da República, e uma profunda reforma do sistema político.

O tamanho das reformas propostas no acordo e o seu escopo político encontraram forte oposição dos setores políticos e econômicos que se beneficiam da desigualdade, do modelo rentista e da financeirização da terra. Segundo os relatórios da ONU e do Instituto Kroc (Universidade de Notre Dame), a lentidão do avanço no processo de implementação do Acordo de Paz traz efeitos negativos para os cidadãos e, especialmente, para ex-combatentes. Pode-se afirmar que sua implementação completa e eficiente poderia abrir possibilidades de fortalecer uma alternativa política e econômica na Colômbia, pois daria garantias às forças populares e constituiria um polo de disputa política e de modelo econômico. Diante desse cenário, as forças de ultradireita e militaristas, incluindo o governo nacional, impedem sua implementação e se recusam a construir uma paz completa.

 


Dos Acordos de Paz (2016) às recentes eleições (2019): as disputas pela paz

Durante décadas, a política colombiana girou em torno do dilema entre guerra e paz, deixando em segundo plano as disputas econômicas e sociais em torno do modelo neoliberal. Nesse contexto, enquanto setores de poder – nacionais e estrangeiros – promoveram uma saída militarista para o conflito armado interno, o movimento popular conseguiu acumular forças suficientes para colocar a paz como eixo central da política colombiana. Assim, os discursos e emoções políticas começaram a girar em torno de como sair da guerra por meio do diálogo, e de uma saída política para o conflito.

A paz alcançou essa centralidade, embora setores do poder propensos à guerra persistam. O ideário da paz completa, depois de décadas de disputas populares, foi forjada com o objetivo de incluir todas as insurgências, abrir as portas da democracia e permitir que os de baixo expressem como pensam a Colômbia – a partir da vida da ruralidade – na perspectiva das vítimas, mulheres, dissidentes e trabalhadores precarizados nas grandes e médias cidades. A hipótese política da paz não foi construída com base no silêncio da guerra, mas em seu funcionamento como eixo da política nacional para reconstituir a ideia de ação cidadã em torno da mudança da ordem social atual; isto é, o desafio de construir um projeto contra hegemônico, a partir da paz, que se oponha ao neoliberalismo armado, (González Casanova, 2013; Seoane, 2016) constituído no país como um modo de governo e economia.

 

 

Movilización en Barranquilla

Mobilização em Barranquilla, departamento de Atlântico.
Equipe de Comunicação da Marcha Patriótica

 

Com a assinatura do Acordo de Paz entre o Estado e as Farc e o início dos diálogos com o Exército de Libertação Nacional (ELN), em 2016, iniciou-se uma mudança no cenário político e eleitoral. Em primeiro lugar, o eleitorado se polarizou entre aqueles que apoiavam ou não o Acordo (nem todos que foram contra o acordo eram contra a paz) o que gerou uma derrota parcial do movimento pela paz e das forças populares no plebiscito de 2016 que obrigou a modificar o acordo original, alterações estas ratificadas posteriormente pelo Congresso. Dois anos depois, com o Acordo em pleno processo de implementação, ocorreram as eleições presidenciais. Iván Duque, candidato da coalizão uribista, contrário ao Acordo de Paz e expressão da saída militarista e repressiva, triunfou; no entanto, pela primeira vez na história colombiana, um candidato progressista chegou ao segundo turno, desafiando o poder da direita instalado desde o século XIX. Mais de 8,2 milhões de pessoas votaram no progressismo, confirmando a hipótese de desejo de mudança em um segmento da população, pronta para desafiar a hegemonia da direita e da guerra.

Finalmente, em 27 de outubro de 2019, foram realizadas eleições municipais e departamentais que deram nova força às tendências eleitorais de ruptura e de centralidade na paz. Como resultado, as principais cidades do país (Bogotá, Medellín, Cali, Cartagena, Cúcuta, Bucaramanga, Manizales) serão governadas por setores independentes dos partidos tradicionais, com tendências progressistas e convencidas da paz democrática. Expressou-se, assim, uma ruptura política em que a busca por programas e demandas sociais começa a ser central na definição de autoridades governamentais, e o passado clientelista e de coerção tradicionais só têm efeitos em municípios com baixa ou média densidade populacional, onde as lógicas conservadoras ainda prevalecem.

Embora os resultados das eleições não beneficiem diretamente aos ex-combatentes guerrilheiros, eles conquistaram uma prefeitura e várias representações legislativas locais. As Farc também têm dez cadeiras no Congresso, designadas como parte do Acordo de Paz, de onde têm o desafio de romper, junto com a parcela da sociedade que aposta na paz, em direção a um cenário de convergência política que tire o país do neoliberalismo, embora tenham de enfrentar forças poderosas, lideradas pelo presidente Iván Duque, que reivindicam um país em guerra. Lembre-se de que, no contexto dessas eleições, foram assassinados 21 candidatos de vários partidos e em várias partes do país o voto foi restringido pelos poderes locais aliados à violência. A paz ainda está em disputa.

 


Extrativismo, militarização e alternativas

O Acordo de Paz entre o Estado e as Farc-EP teve como objetivo superar as restrições democráticas impostas pelo sistema político e os efeitos do modelo econômico que lhe sustenta, defendido por frações poderosas das classes dominantes que causam desigualdade e pobreza estruturais e que se beneficiam da própria dinâmica armada que o conflito social assumiu.

Nessa perspectiva, existem quatro restrições à democracia impostas por esse modelo econômico: 1) a militarização e a repressão, sob a doutrina do inimigo interno; 2) a coerção à cidadania com a conivência estatal e paramilitar em áreas de interesse para o modelo neoliberal; 3) as políticas de ajuste neoliberal; e 4) o boicote à implementação do Acordo de Paz por parte do governo nacional. Essas quatro políticas se desenvolvem em territórios vinculados a três iniciativas socioeconômicas: o uso do faturamento hidráulico (fracking), a promoção da mega-mineração e a ação punitiva contra os plantadores de folhas de coca. Ações que aprofundam as causas do conflito armado e buscam ampliar a desigualdade própria do modelo econômico. Portanto, enquanto os dois primeiros reforçam a financeirização econômica, o terceiro acentua a fracassada “guerra às drogas” imposta pelos EUA. Um modelo que mantém a desigualdade e a miséria nas cidades, onde 85% dos trabalhadores recebem menos de 500 dólares por mês (Dane, 2018).

 

Mobilisation in the Department of Cauca

Mobilização no departamento de Cauca, 2013.
Equipe de Comunicação da Marcha Patriótica

Trata-se de um neoliberalismo com intervenção estrangeira que, apesar de tudo, encontra forte resistência nos territórios. Organizações populares e movimentos sociais o enfrentam com mobilizações, liderando lutas importantes contra a mega-mineração, pela água, pela substituição acordada (financiada pelo Estado) de culturas ilícitas. Lutas por trabalho digno e por um movimento pela paz que detenha a militarização estatal dos territórios e permita, sob a democracia, a ação política por mudança social. Disputas que são territoriais e comunais, com um senso histórico de defesa da terra, dos bens comuns e da produção soberana de alimentos.

A orientação política e econômica do Estado colombiano baseia-se na manutenção de um sistema de abandono dos trabalhadores precarizados nas cidades e no campo, sustentando a miséria das populações indígenas, camponesas e afrodescendentes, apoiada em uma estratégia de conivência e apoio à criação de grupos paramilitares (Molano, 2015, 196-198). Com esse modelo de saque, apenas 26,6% da população colombiana vive em áreas rurais, das quais 45,6% vivem abaixo da linha da pobreza, chegando a 63,5% para as comunidades étnicas (Censo Agrário, 2015). O território da Colômbia possui uma área de 1,13 milhão de km², onde existem áreas habitadas que permanecem isoladas, sem infraestrutura viária ou políticas públicas de integração territorial. A pobreza extrema na zona rural – especialmente entre a população afrodescendente e indígena – é semelhante ou superior a Ruanda ou Etiópia, e a desigualdade é a segunda no continente (Gini: 0,53), depois do Haiti (Gini: 0,60). Esse panorama rural de desigualdade e pobreza contextualiza a prevalência das culturas de folhas de coca, papoula e maconha usadas para produzir drogas ilícitas.

Uma realidade que o movimento popular enfrenta com projetos coletivos de resistência econômica e luta por um modelo rural diferente do neoliberal já descrito. As Zonas de Reserva Camponesa (ZRC) e as Zonas de Desenvolvimento Agroalimentar (ZDA) são as propostas coletivas mais destacadas que promovem projetos alimentares baseados em modelos de propriedade coletiva da terra e de autossustentabilidade reconhecidos como bem-sucedidos. São novas propostas de reforma agrária orientadas para a soberania alimentar, desenvolvidas com sucesso em várias regiões do país e que buscam uma saída para as lavouras ilegais. Hoje existem seis ZRC estabelecidas que totalizam 831 mil hectares em seis departamentos do país, e outras sete (total de 1.253.000 hectares) aguardam para serem reconhecidos pelo Estado. São processos populares fundamentais na formação da Cúpula Agrária, Étnica, Camponesa e Popular, em 2014, um projeto de unidade de lutas rurais e populares, que hoje representam o setor mais dinâmico do movimento social e o mais ativo na busca da solução política para conflitos armados.

A paz nessa perspectiva de transformação do modelo econômico da ruralidade é uma possibilidade certeira para sair do neoliberalismo. Se o povo colombiano conseguir vencer a disputa pela paz, com garantias democráticas, o modelo popular rural será central na disputa contra hegemônica. O problema nodal da terra é então paradoxal. Devido ao seu papel na acumulação e na financeirização, tem sido o principal motor da guerra; mas, mudando seu curso, pode se tornar o fator de mudança.

 

Títulos e solicitações de concessões mineiras e principais empresas

Fonte: Rede de ação frente ao extrativismo

 


Geopolítica do conflito armado interno

A Colômbia se tornou um agente-chave na disputa geopolítica regional em favor dos interesses dos EUA e seus propósitos de reposicionamento regional após duas décadas de governos progressistas e anti-imperialistas. Para o país do Norte, é necessário superar a crise financeira e sistêmica iniciada em 2008. As guerras híbridas na região, que se desenvolveram por meio de golpes “brandos”, das guerras judiciais (lawfare) e da chamada assistência ao desenvolvimento (softpower), expressaram-se na Colômbia sob a forma de “guerra às drogas”, encobrindo seu verdadeiro objetivo de sufocar as lutas populares e ter disponíveis, sem obstáculos, os recursos energéticos de mineração e a biodiversidade andino-amazônica.

A classe dominante, com o apoio dos EUA, transformou o país em um campo operacional a partir do qual projetou as consequências do conflito armado interno para a política latino-americana e consolidou uma situação de guerra híbrida transfronteiriça com o objetivo de intervir no controle geopolítico da região e, em particular, sobre o poder político e econômico da República Bolivariana da Venezuela. É claro que os EUA e seus aliados colombianos consideram vital uma derrota do projeto bolivariano, supondo que após sua queda será difícil reconstituir um projeto emancipatório na região.

 

Village of El Mango, October 2015

Distrito El Mango, outubro de 2015, departamento de Cauca.
Equipe de Comunicação da Marcha Patriótica.

 

Nesse contexto, para os EUA, o conflito armado interno na Colômbia é funcional. Um conflito nascido na década de 1960 como parte das disputas suscitadas pela instalação e desenvolvimento do capitalismo tardio no país e pela interferência externa por meio do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), a da Aliança para o Progresso e as missões de especialistas economistas e militares. Assim, desde aqueles anos, foram desenvolvidas condições para as classes dominantes, as forças armadas e a sociedade civil (submetida a essas condições culturais hegemônicas) favorecerem planos e ações imperialistas no país e na América do Sul. Na mesma direção, os poderosos do país e os EUA persistiram na saída militar para o conflito interno pelo qual promoveram o plano militar mais sofisticado imposto na região – o chamado Plano Colômbia – fortalecendo as forças armadas e a repressão.

Desde 2001, os EUA avaliaram a situação do conflito armado interno como uma ameaça real que desafiava o Estado colombiano (Marcella, Wilhelm, 2001), uma preocupação ampliada por causa do avanço do bolivarianismo na Venezuela e dos governos progressistas da região. Nesse contexto, avalizou-se uma maior intervenção militar e política no país. Dez anos depois, em 2011, o conflito armado estava longe de ser resolvido e havia se prolongado em um cenário de empate negativo em que nenhuma das forças poderia se submeter à outra, embora as forças armadas tivessem construído uma superioridade técnica e tivessem desferido fortes ataques à insurgência. Nesse contexto, ocorreram as conversas concluídas com os Acordos de Paz de 2016. As ações desestabilizadoras das elites contra a Venezuela foram mantidas devido ao servilismo e à longa “assistência” dos EUA, tanto militar como política, para sustentar a ordem social em vigor na Colômbia. No calor dessa intervenção, foi criado um “complexo industrial militar dependente”, em torno do qual orbitam empresas privadas colombianas, estadunidenses e israelenses que se beneficiam dos negócios de segurança e defesa que representam 13,1% do orçamento nacional.

Essa lógica empresarial da guerra presente nas esferas do poder se sobrepõe a qualquer consideração política pela paz e justiça social. As forças armadas colombianas e seus parceiros privados estão autorizados a fabricar produtos bélicos, rifles, projéteis, explosivos e, em menor grau, simuladores de aeronaves não tripuladas, radares e barcos-patrulha, mas são obrigados a comprar suprimentos e know-how de seus parceiros estadunidenses e israelenses, como aparelhos de ciber segurança e treinamento para sustentar a guerra híbrida, não apenas contra os guerrilheiros, mas também contra os desafios hemisféricos que os EUA consideram prioritários: governos progressistas, a revolução cubana e venezuelana e, sobretudo, os avanços nas relações políticas e comerciais entre os países da América Latina e os RICS – Rússia, Índia, China e África do Sul.

A aliança da Colômbia com os EUA em suas aventuras geopolíticas, consolida-se com a entrada do país sul-americano na Otan como parceiro global, ampliando a tensão devido a uma possível invasão da Venezuela e desempenhando com mais precisão o papel que o governo colombiano deseja cumprir nos planos regionais dos EUA e justificando a continuidade do aparato de guerra que serve para conter o descontentamento social resultante da desigualdade e pobreza próprias do neoliberalismo.

Nesse cenário, o governo de Iván Duque pretende dar prioridade à “guerra às drogas” imposta pelo governo Donald Trump e ao confronto ideológico contra os governos progressistas da região, especialmente nos processos venezuelano e cubano. As condições internas, entretanto, parecem atrapalhar esses projetos da extrema direita, pois ali o governo parece não ter força ou consenso político suficientes para conduzir eficazmente a economia nacional ou conjurar a capacidade de mobilização e luta de importantes setores da sociedade colombiana que resistem, mesmo sob constantes violações dos direitos humanos, repressão e assassinato de líderes sociais – embora o país mantenha sua agressividade contra os governos progressistas da região.

 

 

National mobilisation in support of the Peace Accord

Mobilização nacional em apoio ao Acordo de Paz, novembro de 2016, Bogotá D.C.
Equipe de Comunicação da Marcha Patriótica.

 


Verdade e justiça: a paz política

O conflito armado colombiano, devido à sua extensão de seis décadas, teve vários estágios e variações em seus modos de operação. Assim, até 1991, foi enquadrado nas abordagens da Guerra Fria, em que o conceito de inimigo interno era central e o combate à insurgência foi desenvolvido por meio de ações de inteligência e operações militares em campo. Em seguida, assumiu a forma de uma guerra de amplo espectro ou híbrida, consolidada pelo Plano Colômbia, que combinava ações psicológicas, judiciais e midiáticas, com uma sofisticada atividade desta última, que acabou gerando uma “pós-verdade” sobre o conflito, negando as condições sociais e políticas que deram origem ao levante armado civil na década de 1960. Esse último período pode ser considerado um laboratório do “lawfare”, ou guerra judicial, aplicada posteriormente na América Latina (Romano: 2019).

Com esses instrumentos foram realizadas prisões em massa de líderes sociais, acusando-os de apoiar às guerrilhas, populações inteiras foram intimidadas para que retirassem seu apoio a elas e tomando ações legais para impedir uma saída política do conflito, ao considerar os guerrilheiros como grupos terroristas e, de fato, negando a existência de um conflito armado interno. Um pulso político que acabou decantando nos diálogos de paz entre o Estado e as Farc em Havana, e depois na mesa montada entre o Estado e o ELN (que terminou sem um acordo final), porque em ambos os casos, as guerrilhas foram reconhecidas como organizações políticas.

Os desenhos institucionais da justiça comum e da justiça de transição apoiados pelos EUA por meio da formação de juízes e da exportação do sistema penal acusatório reafirmam a concepção de “combater o inimigo interno e o terrorismo”, como ocorreu no processo de paz na Guatemala e em alguns aspectos no da Colômbia (Calderón, 2019). No entanto, o modelo de justiça e verdade acordado entre o Estado e as Farc visava à restauração moral das vítimas e, principalmente, a esclarecer a verdade ilusória e obscura, escondida pela guerra híbrida ao menos nas últimas duas décadas.

Para buscar a verdade e a não repetição da história, foram estabelecidas duas instituições independentes do sistema judicial formal: a Comissão de Esclarecimento da Verdade e a Jurisdição Especial de Paz (JEP), encarregadas de revelar as responsabilidades dos militares, guerrilheiros e empresários nas violações do Direito Internacional Humanitário (DIH) durante o longo conflito armado interno. A JEP enfatiza o conhecimento da verdade sobre o conflito sob uma perspectiva restaurativa e administra a justiça para aqueles que se subordinem às condições impostas, em busca da verdade sobre os fatos por meio de “mega causas” requeridas pelas vítimas, ou a partir de ofícios de denúncias preexistentes.

Esse sistema de justiça é combatido pela extrema direita colombiana, por considerar que equipara os crimes cometidos pelos insurgentes e aos dos agentes do Estado. Esses setores reivindicam impunidade para os militares e empresários e punição para os guerrilheiros. Uma tensão que configura um processo de longo prazo, com muitos obstáculos, como aconteceu em outros países ou em transição de ditaduras para democracias.

Nesse sentido, o Acordo de Paz não promulgou uma lei de ponto final, mas um sistema de disputa pela verdade, complexo e com alcances relativos, pois depende da capacidade das organizações das vítimas e da correlação de forças políticas para avançar sobre os interesses dos setores da classe dominante que tinham (ou continuam a ter) ampla responsabilidade por crimes de guerra e por terem usado o conflito armado como um meio de enriquecimento. Dessa forma, justiça e verdade são instrumentos poderosos, porque incluem a verdade sobre o financiamento do paramilitarismo, o que pode ajudar em seu desmantelamento e gerar condições de segurança para desenvolver uma efetiva abertura democrática.

 


No presente, em direção ao futuro

  • Na Colômbia, a paz está em disputa. É uma luta que implica mudar completamente o eixo gravitacional da política do país da guerra para a paz. Os seis pontos do Acordo de Paz se tornaram um programa de luta antineoliberal que dialoga e se enriquece com outras demandas populares. Ele define um caminho de abertura democrática que envolve retirar a violência do exercício da política, pois esta é reproduzida pelo poder estabelecido em várias regiões do país. O acordo também é um roteiro para superar as condições de desigualdade e pobreza, especialmente nas áreas rurais, onde o modelo de acumulação e expropriação de riqueza está concentrado, reconhecendo e reparando milhões de pessoas afetadas pela guerra. Preservar a vida do movimento popular e das comunidades é essencial para abrir caminho para mudanças democráticas.

  • O governo colombiano, liderado pela extrema direita, age contra o Acordo de Paz. Utiliza mecanismos institucionais e burocráticos para atrasar a implementação dos seis pontos do Acordo e se recusa a dialogar com o ELN. Eles têm medo da paz política porque esta implica desmantelar o sistema de dominação baseado na coerção, repressão e estigmatização do movimento popular.

 

 

National Indigenous March, May 2016, Department of Cauca.

Marcha Nacional Indígena, maio de 2016, departamento de Cauca.
Equipe de Comunicação da Marcha Patriótica.

  • Os benefícios da guerra são transfronteiriços e fazem parte da ação geopolítica da direita latino-americana e dos EUA. A paz política abre a possibilidade de desafiar o poder estabelecido a partir do qual a agenda de desestabilização de vários projetos progressistas na região está sendo promovida e, em particular, o bloqueio e as ameaças de intervenção militar contra a Venezuela. Tanto a implementação do que foi acordado no Acordo de Paz de 2016 quanto a realização de um acordo com o ELN permitiriam maiores progressos do movimento popular e dos setores antineoliberais nas lutas pela transformação política e econômica do país, não isento de contradições e obstáculos. A tendência nas grandes cidades do país, onde avançam expressões políticas progressistas e independentes que limitam o poder tradicional e a extrema direita, expressas nas eleições deste ano, mostram isso.

  • As violações estatais do acordo também visam gerar fraturas no movimento popular. A estratégia de dividir opiniões em torno da estratégia de luta pela paz é evidente. Enquanto não houver paz com todos os guerrilheiros, a estratégia de dominação estatal baseada na desigualdade, pobreza e coerção continuará e a vida ficará exposta à persistência de ações paramilitares. As mortes sistemáticas de lideranças sociais e dirigentes políticos do campo popular – intensificadas nos últimos meses – têm o objetivo de gerar medo e raiva, em busca de respostas violentas que quebrem a atual tendência social que não acredita no relato oficial da guerra e começa a reconhecer uma realidade diferente da pós-verdade manipuladora que colocou o governo como o “lado bom” e o campo popular como o “ruim”.

 

Mobilisation in the Department of Cauca

Mobilização no departamento de Cauca.
Associação Camponesa de Catatumbo – Ascamcat.

 


Bibliografia utilizada

Atlas de conflictos socioambientales: https://ejatlas.org/country/colombia

Acuerdo para la terminación del conflicto y la construcción de una paz estable y duradera (2016). Disponible en: http://www.altocomisionadoparalapaz.gov.co/procesos-y-conversaciones/Documentos%20compartidos/24-11-2016NuevoAcuerdoFinal.pdf

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Cepeda, Ivan (2006). Genocidio Político: el caso de la Unión Patriótica en Colombia. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/r24797.pdf

Cinep (2019) Informe DDHH 2019: Violencia camuflada: la base social en riesgo. Disponível em: https://www.cinep.org.co/Home2/component/k2/690-informe-ddhh-violencia-camuflada-la-base-social-en-riesgo.html. Puede consultarse también: https://www.youtube.com/watch?v=p6PE9k1IBYU

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Indepaz (2019), Informe DDHH, todas las voces todos los rostros. http://www.indepaz.org.co/wp-content/uploads/2019/04/SEPARATA-DE-ACTUALIZACI%C3%93N-Informe-Todas-las-voces-todos-los-rostros.-30-Abril-de-2019.pdf

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González, Casanova Pablo 2013 “Democracia, neoliberalismo y la lucha por la emancipación”. Disponível em: http://www.redalyc.org/ articulo.oa?id=13926971012

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Este dossiê foi elaborado pelo Grupo de Pensamento Crítico Colombiano do Instituto de Estudos em América Latina e Caribe (IEALC), Faculdade de Ciências Sociais, Universidade de Buenos Aires. Agradecemos especialmente aos pesquisadores desse coletivo por sua colaboração com o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.