PL sobre estrangeirização das terras brasileiras avançou no final de 2020 no Senado; medida prevê a possibilidade de entrega de até 25% das terras dos municípios para as mãos do capital estrangeiro. 

 

 

Nº. 01/2021

 

Este é o Boletim mensal do Observatório da Questão Agrária do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, em que traremos todos os meses um resumo dos principais temas da movimentação do agronegócio no Brasil baseados nos seguintes aspectos: a) bens da natureza e atuação do capital financeiro; b) controle dos insumos; c) mecanização agrícola e novas tecnologias; d) agroindústria e alimentos; e) movimento de concentração, centralização e internacionalização das empresas do agronegócio; f) atuação legislativa e no judiciário. Neste primeiro número de 2021, apontamos o avanço da estrangeirização das terras e dos bens da natureza, as tendências de mais um ano com vultosos ganhos para o agronegócio, a pauta prioritária da bancada ruralista no Congresso Nacional e a integração das grandes empresas de tecnologia com as transnacionais do agronegócio, ampliando seu controle sobre a agricultura.

 

Apropriação de terras e dos bens da natureza

A busca do capital em ampliar as possibilidades de estrangeirização das terras brasileiras avançou no final de 2020 com a aprovação do PL 2.963/2019 no Senado. O PL prevê a possibilidade de entrega de até 25% das terras dos municípios para as mãos do capital estrangeiro.

Por trás de tal medida, impera a lógica da financeirização que vê os bens naturais como ativos financeiros e uma possibilidade de obter ganhos extraordinários por meio de um grande saque sobre o patrimônio público. Para efetivar tal plano, o governo Bolsonaro e a bancada ruralista atuam segundo os interesses de classe do capital, assegurando medidas estratégicas. Mesmo que na aparência existam alguns conflitos, na essência, o atual projeto no poder tem atendido a pauta do setor.

Atualmente, cerca de 3,94 milhões de hectares estão formalmente no controle de pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, segundo levantamento do Brasil de Fato. Destas, 33% se encontram na região sudeste, 22% no centro-oeste, 16% no nordeste, 15% no sul e 14% no norte do país.

A principal destinação destas áreas se divide em atividades de reflorestamento, pecuária, agricultura permanente, produção de grãos e mineração, respectivamente. A presença de atividades vinculadas ao reflorestamento pode estar vinculado à expansão do mercado de créditos de carbono, assim como ao crescente interesse no controle de unidades de conservação. Segundo a advogada socioambiental Larissa Parker, o mercado de crédito de carbono pode significar um controle indireto do capital estrangeiro sobre as terras no país, já que um contrato de pagamento de serviços ambientais aos brasileiros que hoje detém a terra, possibilitaria a “uma empresa transnacional ter acesso indireto à terra por um período de 30, até 50 anos, burlando de novo a lei de aquisição de terras por estrangeiros”.

O dado de controle estrangeiro das terras brasileiras é muito maior se levado em consideração as práticas ilegais de estrangeirização, como a atuação dos fundos de pensão estrangeiros na aquisição de terras no Brasil, que tem sido fonte de especulação financeira e danos ambientais e sociais. Um exemplo disso é o caso do fundo de pensão da empresa estadunidense TIAA e da universidade de Harvard, como aponta o relatório da organização Grain, que informa que o Tribunal de Justiça da Bahia e o Incra declararam ilegais as centenas de milhares de hectares que esse fundo tem adquirido no estado.

Estes fundos são os maiores compradores estrangeiros de terras no Brasil; desde 2008 eles já adquiriram 750.000 hectares, principalmente na região Nordeste e no Cerrado. Diversos relatórios apontam para uma apropriação ilegal de terras (como empresas offshore para esconder tais operações), despejos violentos de comunidades rurais, desmatamentos e queimadas.

 

Alimentação e agroindústria

O agronegócio foi o único setor que teve crescimento no ano de 2020, puxado pela recuperação dos preços das commodities e pela recuperação da demanda chinesa. Além do mais, o agronegócio vem sendo muito prestigiado pelo governo, ao menos alguns de seus setores mais fortes, como a sojicultura. No ano passado, o Congresso aprovou a Lei 13.986 que “modernizou” o financiamento do agronegócio. O plano de expansão do setor prevê o gasto de R$ 8,7 bilhões em infraestrutura. Tudo isso apoiado pela “política de regularização fundiária e ambiental”, com a criação de uma “segurança jurídica” para o investidor.

Neste contexto, a previsão é de um 2021 com crescimento do Valor Bruto da Produção (VBP) agropecuária. O valor produzido “da porteira para dentro” deve bater um novo recorde, com a estimativa de R$ 959,7 bilhões, o que representa crescimento de mais de 10% em relação ao ano anterior. A soja deverá ser o principal carro chefe desse crescimento, com uma expectativa de aumento de 24,4% em relação a 2020.

Já o milho deverá manter preços elevados; com a desvalorização cambial, estima-se que poderá haver um crescimento de 17,7% frente a 2020. Outras lavouras que apontam tendência de crescimento são: arroz (17,3%), batata (22,1%), cacau (14,7%), mandioca (10,9%) e trigo (8,3%).

Para a pecuária, o Ministério da Agricultura espera um crescimento de 6,1% com um VBP de R$ 308,5 bilhões, puxado pela pecuária bovina com expectativa de crescimento de 8,7%, frangos com alta de 4,7% e suínos com aumento de 3,5%.

A estimativa do ministério é baseada em projeções otimistas para as exportações e uma suposta recuperação da economia para este ano, o que poderia impactar positivamente no consumo doméstico.

Entretanto, o cenário para a maioria dos trabalhadores é de perda do poder de compra do salário mínimo, frente ao aumento dos preços dos alimentos internamente. A inflação oficial no Brasil em 2020 foi de 4,52%. O aumento dos preços dos alimentos somou alta de 14,09%, diante de um crescimento do salário mínimo abaixo da inflação, ou seja, sem ganhos reais. Com isso, a tendência é aumentar a vulnerabilidade alimentar do povo.

Os alimentos que tiveram as maiores altas em 2020 foram o arroz (76%), feijão (45%), carnes (18%), leite (27%) e óleo de soja (104%).

 

A atuação legislativa do agronegócio

Com a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a bancada ruralista tem avaliado que será aberto um período no legislativo para avançar com a agenda prioritária do agronegócio. O novo presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (a chamada bancada ruralista), o deputado Sérgio Souza (MDB/PR), afirma que a primeira prioridade da representação do agronegócio no Congresso Nacional é garantir, no orçamento de 2021, recursos necessários para cobrir o seguro rural em sua integralidade e a equalização dos juros.

Segundo anunciou o líder ruralista ao jornal Valor Econômico, “as pautas da bancada ruralista são as pautas do governo”, e listou as prioridades do setor no parlamento, como “solucionar” o estoque de dívidas do passado, entre elas a extinção das dívidas com o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural), além da ampliação dos recursos no orçamento. Seguindo nas prioridades, o parlamentar aguarda a definição do Instituto Pensar Agro (entidade que assessora a bancada ruralista) para o posicionamento da bancada sobre a venda de terras para estrangeiros; o tema ainda não é consenso entre os ruralistas e o próprio Bolsonaro já se manifestou contrário à proposta.

Outra prioridade da bancada – presente na lista de projetos prioritários do governo federal entregue aos novos presidentes das casas legislativas – é a regularização fundiária, assim como as mudanças constitucionais nas regras de demarcação de terras indígenas, tornando-as mais rígidas e possibilitando o arrendamento de seus territórios. Por fim, a agenda dos venenos continua sendo prioridade dos ruralistas, com o objetivo de acelerar ainda mais as aprovações de novas moléculas. Em 2020, o Brasil bateu novo recorde na aprovação de agrotóxicos, com 493 novas autorizações.

 

Agricultura 4.0 e a concentração do capital na agricultura

A integração cada vez maior das grandes empresas de tecnologia e as transnacionais do agronegócio tem produzido o efeito de amplificar o controle do capital sobre amplas áreas agrícolas ao redor do mundo. Com os aplicativos de monitoramento, os produtores do agronegócio cedem dados de suas operações “em troca” de recomendações de uso de fertilizantes químicos, agrotóxicos e sementes transgênicas das próprias empresas produtoras destes insumos. Por outro lado, as empresas de tecnologia avançam no controle da distribuição a partir de plataformas digitais, como afirma o relatório da Grain.

Esse é o caso, por exemplo, da integração entre as empresas Bayer e Amazon Web Services, a maior plataforma de armazenamento de dados em nuvem do mundo. A Amazon está desenvolvendo sua plataforma de agricultura digital a partir dos dados coletados junto a transnacional dos agrotóxicos.

Esta integração tem envolvido gigantes do ramo de tecnologia como a Microsoft, Apple, Amazon, Facebook, Google e Alibaba. Pelo lado das transnacionais do agronegócio, estão em operação ou em desenvolvimento plataformas da Bayer/Monsanto, Syngenta/ChemChina, Basf, Corteva e FMC. Estas iniciativas contam com o apoio de instituições internacionais, como a Aliança para uma Revolução Verde na África (Agra), Consultative Group on International Agricultural Research (CGIAR), Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e o Banco Mundial.

O avanço da integração entre as gigantes globais de tecnologia e as transnacionais do agronegócio faz parte da tendência do capital em utilizar as tecnologias para ampliar suas margens de lucro e fortalecer os monopólios da produção e distribuição dos insumos e das commodities, como conclui o relatório da Grain. “Essas corporações favorecem o uso de insumos químicos e maquinário de alto custo, além da produção de commodities para o setor corporativo em detrimento de mercados locais. Incentivam a centralização, concentração e uniformização, além de serem suscetíveis a casos de abuso e monopolização. Com isso, apenas aprofundarão as diversas crises que afligem o sistema global de alimentos”.