CoronaChoque e socialismo

Desenho adaptado da People’s Medical Publishing House [Editora Médica Popular], China, 1977.

CoronaChoque é um termo que se refere à forma como o vírus atingiu o mundo com uma força avassaladora e como a ordem social do Estado burguês desmoronou diante dele, enquanto a ordem socialista pareceu mais resiliente.

Este é o terceiro de uma série de três artigos sobre o CoronaChoque. Baseia-se na pesquisa de Ana Maldonado (Frente Francisco de Miranda, Venezuela), Manolo de los Santos (pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social), Subin Dennis (pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social), e Vijay Prashad (diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social).


Friedrich Engels disse uma vez: “A sociedade burguesa encontra-se perante  um  dilema – ou passagem ao socialismo ou regressão à barbárie”. O que significa  “regressão à barbárie” no nível atual da civilização europeia? Até  hoje todos nós  lemos  e repetimos essas palavras sem pensar, sem ter ideia de sua terrível  gravidade. Se olharmos à nossa volta neste momento, veremos o que significa a regressão da  sociedade  burguesa à barbárie. Esta guerra mundial é uma regressão à barbárie. O triunfo do imperialismo leva ao aniquilamento da civilização —   ocasionalmente, enquanto durar uma guerra moderna, e definitivamente,  se  o  período  das  guerras  mundiais que está começando continuar sem obstáculos até suas últimas conseqüências. Hoje encontramo-nos exatamente como Friedrich  Engels previu há uma geração, 40 anos atrás, perante uma escolha: ou triunfo do imperialismo e a decadência de toda a civilização, como na antiga Roma, despovoamento, desolação, degeneração e um grande  cemitério;  ou vitória do socialismo,  isto  é,  da  ação combativa  consciente  do  proletariado internacional contra o imperialismo e seu método, a guerra. Esse é um dilema da história mundial, uma coisa ou outra, uma balança cujos pratos oscilam e aguardam a decisão do proletariado. O futuro da civilização e da humanidade depende de o proletariado jogar sua espada revolucionária na balança, com alta determinação. Nesta guerra o imperialismo venceu. Sua espada ensanguentada pelo genocídio fez pender brutalmente o prato da balança para o abismo da desolação e da ignomínia. Toda a desolação e toda a ignomínia só podem ser contrabalanceada se aprendermos com a guerra, de modo que o proletariado desista do seu papel de servo nas mãos das classes dominantes e recupere o papel de senhor do seu próprio destino.

Rosa Luxemburgo, Crise da social-democracia, 1915. (Textos escolhidos, vol. II, Editora Unesp, p. 29. Trad. Isabel Loureiro).

Ở nhà là yêu nước! [Ficar em casa é amar seu país], Vietnã, 2020.
Hiep Le Duc

No final de dezembro de 2019, o Centro Wuhan para Controle e Prevenção de Doenças, na província central de Hubei, China, detectou casos de pneumonia com causa desconhecida. Nos primeiros dias de janeiro de 2020, as autoridades chinesas fizeram informes regulares sobre o surto para a Organização Mundial da Saúde (OMS), bem como para outros países e regiões importantes com laços estreitos com o país, como Hong Kong, Macau e Taiwan. Em 5 de janeiro, a OMS divulgou seu primeiro relatório sobre uma “pneumonia com causa desconhecida” em Wuhan. Pouco se sabia sobre o vírus, tampouco como entendê-lo adequadamente, ou se a transmissão poderia ocorrer entre seres humanos. A sequência do genoma do novo coronavírus (SARS-CoV-2) foi publicada no dia 12 de janeiro pela Iniciativa Global sobre Compartilhamento de Dados sobre Influenza (Gisaid, sigla em inglês). Zhong Nanshan, um importante pneumologista chinês que está assessorando o governo asiático nesta pandemia, confirmou a transmissão de humano para humano do novo coronavírus em 20 de janeiro.

Assim que ficou claro que esse vírus poderia ser transmitido entre humanos, as autoridades chinesas agiram. Wuhan, uma cidade de 11 milhões de pessoas, foi fechada, o establishment científico na China – e seus colaboradores em todo o mundo – começou a trabalhar para entender o vírus e a doença (covid-19), e os profissionais do setor de saúde na China se apressaram para serem treinados e ajudar a quebrar a cadeia da infecção. Dentro de Wuhan, os comitês de bairro, que incluem membros de várias outras associações, quadros do Partido Comunista e voluntários de todos os tipos se prontificaram a ajudar com verificações de temperatura, distribuição de alimentos e medicamentos e assistência em hospitais. Após dez semanas de lockdown, Wuhan reabriu em 8 de abril. Em 15 de maio, autoridades começaram a testar todos os moradores da cidade mais uma vez, a fim de proteger a saúde pública e retomar as atividades sociais e econômicas (a China compartilhou os resultados desse teste para ajudar com estudos sobre a viabilidade da teoria da imunidade do rebanho).

Em 30 de janeiro, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou que o surto constitui uma Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional. De sua sede em Genebra, a OMS afirmou que “um vírus altamente contagioso foi detectado e são necessárias medidas rigorosas de testagem, distanciamento física e saneamento ostensivo”.

Nesse ponto, depois de 20 de janeiro, abriu-se um abismo entre os Estados capitalistas e os socialistas. Nossa análise mostra quatro pontos principais de diferenciação entre a abordagem socialista e capitalista em relação ao vírus. A abordagem socialista é baseada em:

  1. Ação governamental com base em evidências científicas;
  2. Produção de materiais essenciais pelo setor público;
  3. Mobilização de iniciativas para facilitar a vida social;
  4. Internacionalismo.

Nos Estados capitalistas (como EUA, Brasil e Índia), ao contrário, os governos têm agido de maneira delirante, fingindo que o vírus não é real ou não é contagioso e esperando que algo milagroso proteja seus cidadãos de seus efeitos perigosos. As empresas do setor com fins lucrativos fracassaram em fornecer o equipamento necessário, enquanto a ação popular tem sido difícil de galvanizar em sociedades atomizadas que carecem do hábito de organização e luta. Finalmente, para encobrir sua incompetência, a classe política dominante nesses Estados recorreu à estigmatização e ao jingoísmo, usando – neste caso – a combinação letal de racismo e anticomunismo para culpar a China.

Neste relatório, analisamos três países (Cuba, Venezuela e Vietnã) e um estado (Kerala, na Índia) para investigar como essas experiências socialistas do mundo conseguiram lidar com o vírus de maneira mais eficaz.

 

 

Cuba

Em 17 de janeiro, a mídia cubana reportou a detecção de uma pneumonia misteriosa na China que, naquele momento, havia matado duas pessoas e infectado outras 41. Quando mais informações surgiram, o governo começou a divulgar os relatórios da OMS. A mídia cubana fez uma cobertura abrangente das decisões tomadas na China para implementar bloqueios e outras medidas para romper a cadeia da infecção. Em 28 de fevereiro, Miguel Díaz-Canel Bermúdez, presidente de Cuba, falou por telefone com Xi Jinping, presidente da China. Durante a chamada, Díaz-Canel expressou o firme apoio e solidariedade do povo cubano, de seu governo e do Partido Comunista à luta da China contra o vírus. Cuba se ofereceu para ajudar de qualquer maneira que pudesse o povo chinês. A BioCubaFarma, uma empresa do setor público, aumentou sua produção de Interferon Alpha 2B e, a partir de 24 de fevereiro, havia fornecido à China mais de 150 mil frascos de dose dupla do medicamento.

Em 28 de janeiro, José Ángel Portal Miranda, chefe do Ministério da Saúde Pública (Minsap), convocou uma reunião nacional sobre o novo coronavírus. A vigilância epidemiológica deveria ser a prioridade, razão pela qual o governo criou um Grupo de Trabalho Nacional para liderar a luta. O Minsap começou a treinar os profissionais de saúde pública – mais de 95 mil médicos e 84 mil enfermeiras – para diagnosticar e tratar casos de covid-19. Uma campanha pública começou a exigir vigilância em relação aos sintomas e maior higiene. As plataformas de mídia compartilharam essas informações, assim como organizações de massa como a Federação das Mulheres Cubanas (FMC), os Comitês de Defesa da Revolução (CDR) e a Federação de Estudantes Universitários (FEU). Francisco Durán García, diretor nacional de epidemiologia do Minsap, fez a primeira declaração oficial naquele dia. Explicou calmamente que o governo havia elaborado uma estratégia “semelhante ao plano que desenvolvemos quando a epidemia de Ebola atingiu vários países”. Carmelo Trujillo Machado, chefe nacional do Programa Internacional de Controle de Saúde do Minsap, disse que as autoridades estariam vigilantes nas portas de entrada dos viajantes com quaisquer sintomas conhecidos da covid-19.

O Grupo de Trabalho Nacional autorizou a compra imediata de equipamentos de proteção, equipamentos médicos e agentes reativos. A produção de 30 itens médicos essenciais tornou-se prioridade. As agências em Cuba começaram a dar ênfase renovada na pesquisa e desenvolvimento de vacinas candidatas e tratamentos antivirais a serem compartilhados com a China. Em abril, o Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia (CIGB) iniciou os primeiros ensaios clínicos com uma vacina que poderia fortalecer o sistema imunológico. Gerardo E. Guillén Nieto, diretor de Pesquisa Biomédica do Centro China-Cuba de Inovação Biotecnológica (CCBJIC), em Hunan, China, disse que sua equipe estava examinando se o sistema imunológico inato poderia ser ativado e, se ativado, conseguiria produzir defesas específicas contra o vírus. Não há vacinas específicas para esta doença, mas Cuba, diz ele, tem outros produtos já existentes que podem auxiliar no tratamento.

Em 10 de março, quatro turistas que chegaram da Lombardia (Itália) apresentaram sintomas de covid-19. Quando seus exames deram positivo, foram transferidos para o Instituto de Medicina Tropical Pedro Kouri (IPK), que possui uma longa história de combate a epidemias. O IPK, juntamente com os hospitais regionais em Santa Clara e Santiago de Cuba, foi designado como o principal local para testar pacientes com suspeita de covid-19. Cada um desses hospitais tem capacidade para testar mil pacientes por dia. O governo decidiu colocar todos os viajantes que chegassem a Cuba em observação por 14 dias.

Em 17 de março, 28 mil estudantes das 13 universidades médicas de Cuba se uniram em uma campanha para visitar todas as casas do país. Os estudantes examinaram cada pessoa, e caso encontrassem algum caso suspeito encaminhavam para o médico de família da comunidade. Esse médico tomaria uma decisão sobre a necessidade de realizar teste com a pessoa. No período de uma semana, os estudantes de medicina visitaram seis milhões de cubanos – metade da população da ilha. Com essa abordagem, cerca de 40 mil cubanos foram testados para a covid-19 até 26 de abril. Na província de Villa Clara, os estudantes visitaram 250 mil pessoas, levando à detecção de 2.687 casos com sintomas respiratórios, incluindo cinco casos potenciais de covid-19. Milhares de estudantes estrangeiros de medicina com bolsas de estudo concedidas por Cuba aderiram a essa campanha. A porto-riquenha Ishaira Nieto Rosas, aluna do 3º ano, explicou que essas visitas são voluntárias, mas que “nesses momentos você percebe que nosso trabalho é muito importante e que a população está ciente disso. Não importa quantas portas temos que bater, ou quantas vezes temos que dizer bom dia. Fazemos isso porque o país precisa de nós e fazemos isso com muito orgulho”.

Em 20 de março, o presidente Díaz-Canel, juntamente com sete membros do Conselho de Ministros de Cuba, foi à televisão para explicar os passos dados até aquele momento e delinear outras medidas. “Temos a responsabilidade de proteger vidas humanas e todo o tecido social, com serenidade, realismo e objetividade. Não pode haver pânico nem excesso de confiança”, disse. Uma atitude baseada na ciência definiu a resposta de Cuba. Naquela data, 21 pessoas tiveram diagnóstico confirmado de covid-19 e outras 716 estavam sob observação em hospitais. O governo apresentou várias medidas:

  1. Os cidadãos cubanos que retornassem para casa do exterior seriam colocados em quarentena por 14 dias.
  2. 60 mil turistas deixariam o país; a entrada de viajantes seria fortemente regulamentada, o que impactaria o turismo, uma das principais fontes de receita de Cuba.
  3. O distanciamento físico passou a ser obrigatório.
  4. Pessoas do grupo de risco e as que não trabalham em setores-chave foram obrigadas a se colocar em quarentena em casa.
  5. O Ministério do Comércio Interno suspendeu todas as atividades públicas. As lojas de alimentos e mercados de agricultores poderiam ficar abertas, mas sob os mais rígidos controles sanitários. Os restaurantes poderiam operar com 50% de sua capacidade.
  6. A ministra do Trabalho e Previdência Social, Marta Elena Feitó Cabrera, afirmou que “ninguém ficará desamparado”, e foram adotadas medidas que garantissem essa condição. Impostos cobrados de trabalhadores independentes do setor privado foram suspensos. Durante o primeiro mês da quarentena, os trabalhadores de licença receberam 100% de seus salários; depois disso, foi prometido aos trabalhadores 60% de seus salários. Anunciaram que os trabalhadores do setor privado receberiam o equivalente ao salário mínimo nacional.
  7. Para evitar a possibilidade de fome, as autoridades cubanas expandiram o sistema de racionamento existente, a fim de garantir a cada família o acesso equitativo a alimentos e suprimentos de saneamento básico durante a pandemia. Cartões de racionamento foram utilizados para distribuição em 12.767 lojas de bairro; esses cartões oferecem uma cesta básica de alimentos que inclui óleo de cozinha, açúcar, arroz e feijão e foram expandidos para incluir ovos, batatas, legumes, ¼ kg extra de frango por pessoa e sabonete, pasta de dente e água sanitária extras. Apesar de suas limitações, os cartões de racionamento e as lojas do bairro atenderam 3.809.000 famílias e preços limitados.

Em 6 de abril, o número de pacientes com covid-19 aumentou para 396, com 1.752 hospitalizados. O governo anunciou medidas adicionais com base no plano nacional. Isso incluiu a suspensão de todas as atividades econômicas não essenciais, a permanência em restaurantes (somente retirada e entregas foram permitidas), transporte público urbano e adiamento do pagamento de água, eletricidade e gás.

A espinha dorsal da resposta de Cuba, como em outros países socialistas, tem sido a ação popular. Os Comitês de Defesa da Revolução (CDRs), fundados em 1960 sob a ameaça de uma possível invasão americana, têm um número estimado de oito milhões de membros (de uma população de 11,34 milhões). Os comitês se organizam por quarteirão e mobilizam as pessoas para ajudar os mais vulneráveis ​​em cada comunidade, para participar de campanhas de saúde e para fornecer comida e abrigo quando há furacões. Na cidade oriental de Santiago de Cuba, membros do CDR como Juana Guerra, professora universitária e integrante da Federação das Mulheres Cubanas, fizeram 16 mil máscaras. Membros da Federação de Estudantes Universitários se voluntariaram em diferentes cidades, ajudando a limpar e cozinhar em centros de isolamento, entregando suprimentos para famílias em quarentena e trabalhando em centros de apoio designados que preparam alimentos para os médicos e famílias vulneráveis. Inspirados pelas batalhas do passado, muitos estudantes dizem com orgulho que a covid-19 se tornou sua Baía dos Porcos (#EsteEsMiGiron).

O internacionalismo está no centro do ethos revolucionário cubano. Em 2005, Cuba fundou a Brigada Médica Internacional Henry Reeve para fornecer assistência emergencial à saúde em todo o mundo; desde então, enviou 25 contingentes para o exterior, ajudando 3,5 milhões de pessoas em 23 países. Essa brigada está agora no centro da luta contra a covid-19, respondendo aos pedidos de envio de profissionais de saúde cubanos para o mundo. Em 15 de março, o primeiro contingente de 130 epidemiologistas e outros médicos especialistas partiram para a Venezuela. Desde então, mais 33 contingentes compostos por 3.337 trabalhadores da saúde foram a 27 países da Europa, África e América Latina (os contingentes variam de dois médicos em Granada a 217 trabalhadores da saúde na África do Sul). Muitos desses países estão sob crescente pressão do governo dos EUA para negar a ajuda cubana. O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, liderou as queixas, acusando a ilha de lucrar com a pandemia. O ministro das Relações Exteriores de Cuba, Bruno Rodríguez Parrilla, respondeu à campanha de difamação dos EUA, perguntando qual o direito do “Secretário de Estado de pressionar governos soberanos e privar seus países de assistência médica?”

Quando o mundo entrou no CoronaChoque, o navio de cruzeiro britânico MS Braemar ficou preso no Caribe transportando 682 passageiros, cinco deles com covid-19, procurando desesperadamente um porto para atracar. Enquanto outros países se recusavam a receber o navio, Cuba – correndo um risco significativo – abriu suas portas e organizou o desembarque e o retorno para casa dos passageiros, afirmando que “os tempos atuais pedem solidariedade, a compreensão da saúde como um direito humano e o fortalecimento da cooperação internacional para enfrentar nossos desafios comuns, ou seja, valores inerentes à prática humanista da Revolução Cubana e de seu povo”.

O sistema revolucionário de Cuba lhe deu força e capacidade de sobreviver diante de bloqueios e pandemias, integrando trabalhadores, camponeses, cientistas, organizações de massa e sistemas de defesa civil com um partido e um governo que coloca a vida humana no centro de sua atenção.

 

Enviamos um médico a Cuba que se transformou em milhões, 2020. 
#CubaSalvaVidas

 

Vietnã

Em 16 de janeiro, antes de se confirmar que o novo coronavírus poderia ser transmitido entre seres humanos, o Ministério da Saúde do Vietnã informou às outras agências governamentais e o público em geral sobre o perigoso vírus e pediu uma ação imediata. Cinco dias depois, em 21 de janeiro, o Ministério deu instruções detalhadas a hospitais e clínicas sobre como combater o vírus. Em 24 de janeiro, o vice-ministro da Saúde, Đỗ Xuân Tuyên, disse que as inspeções seriam realizadas em todos os postos fronteiriços; essa foi uma decisão importante, já que o Vietnã compartilha uma fronteira de 1.400 quilômetros com a China, a apenas dez horas de ônibus de Wuhan. Em 30 de janeiro, o governo vietnamita – liderado pelo primeiro-ministro Nguyễn Xuân Phúc – estabeleceu um comitê nacional de prevenção de epidemias. Dois dias depois, em 1º de fevereiro, Nguyễn declarou efetivamente uma emergência nacional.

O Partido Comunista do Vietnã usou desde cedo uma palavra de ordem: “combater a epidemia é como lutar contra o inimigo”. Mas essa luta teria que ser conduzida com uma atitude científica. Os testes começaram nos pontos de fronteira e equipes de controle de epidemias começaram a testar a população e a rastrear contatos caso uma pessoa infectada fosse identificada. O Instituto Nacional de Higiene e Epidemiologia conseguiu criar um teste muito rapidamente, que foi amplamente utilizado no país; mais de 100 laboratórios realizaram testes de reação em cadeia da polimerase em tempo real, o que permitiu resultados muito mais rápidos à taxa de 27 mil amostras por dia. Em 10 de março, o governo lançou o aplicativo para celular NCOVI para facilitar o rastreamento de contatos. Em vez de bloquear toda a população, as equipes epidemiológicas estudaram a população e isolaram e trataram as pessoas com sintomas, as que apresentaram resultado positivo e qualquer outra com quem entraram em contato; qualquer região com números particularmente altos ficou em quarentena.

Com base no conhecimento científico disponível, as autoridades vietnamitas seguiram uma abordagem em quatro níveis:

  1. Nível um: qualquer pessoa com diagnóstico confirmado é isolada em um estabelecimento de saúde (nesses casos, a auto-quarentena não é permitida).
  2. Nível dois: qualquer um que teve contato com pessoas confirmadamente contaminadas deve ser testado e entrar em um centro de quarentena administrado pelo governo.
  3. Nível três: qualquer pessoa que tenha tido contato com as pessoas do nível dois deve se auto-isolar em casa.
  4. Nível quatro: se houver um surto particularmente grave em uma vila ou hospital, toda a vila ou hospital deve entrar em lockdown.

Esse sistema de isolamento multiníveis ajudou as autoridades a romper a cadeia de infecção. O governo, porém, permaneceu vigilante. Em 30 de março, logo após o Hospital Bach Mai, em Hanói – que havia sido essencial na luta para quebrar a cadeia – ter uma série de casos, o governo anunciou a pandemia nacionalmente.

O Ministério da Saúde postou um vídeo para explicar o conceito de distanciamento físico e como lavar as mãos; o vídeo viralizou por meio do Tik Tok, onde jovens criaram uma dança para acompanhar. A mensagem foi transmitida dentro de dias. As empresas de telecomunicações – incluindo as privadas – enviaram três bilhões de mensagens sobre a covid-19 para os celulares. As máscaras eram obrigatórias em público e os desinfetantes para as mãos à base de álcool foram distribuídos e disponibilizados para venda em qualquer lugar. Escolas e locais religiosos foram todos imediatamente fechados.

O governo ordenou que as empresas do setor público produzissem o equipamento necessário, incluindo os de proteção individual (EPI) e ventiladores, além de álcool gel e medicamentos. Há capacidade industrial suficiente a ser direcionada para produzir esses bens sem preocupações com a manipulação de preços, uma vez que são empresas do setor público. Em 8 de abril, o governo do Vietnã enviou 450 mil unidades de EPI aos Estados Unidos em um ato de solidariedade. Vale lembrar que se trata do mesmo país que foi bombardeado pelos EUA e sofreu com as armas químicas pesadas que até hoje amedrontam a população; a agricultura do Vietnã não poderá se recuperar por gerações.

O setor privado seguiu o exemplo, assim como voluntariados, que criaram “caixas eletrônicos de arroz” para distribuir alimentos para aqueles que perderam sua renda. O governo montou cozinhas comunitárias para alimentar os necessitados.

O Vietnã, com uma população de 100 milhões de pessoas, não teve nenhuma fatalidade por covid-19 até o início de julho.

 

Cảm ơn Việt Nam! [Obrigado, Vietnã!’], Vietnã, 2020.
Hiep Le Duc

Venezuela

Em 26 de fevereiro, autoridades brasileiras relataram o primeiro caso de coronavírus no país, também o primeiro na América Latina. Dois dias depois, 28 de fevereiro, o governo venezuelano criou a Comissão Presidencial para a Prevenção e Controle do Coronavírus (semanas antes do primeiro caso ter sido relatado no país, em 13 de março). Surpreendentemente, durante o mesmo período, os EUA decidiram aprofundar a guerra híbrida contra a Venezuela – apesar da natureza altamente contagiosa do coronavírus e das advertências da OMS.

Antes da pandemia, a Venezuela já estava sob severas sanções dos EUA, pressionando a economia da Venezuela como um todo e sabotando o sistema de saúde pública do país. Em 2018, a Federação Farmacêutica da Venezuela registrou uma escassez de 85% de medicamentos essenciais. Outro estudo, também de 2018, mostrou que 300 mil pessoas correm o risco de morrer por não terem acesso aos principais medicamentos para HIV, doenças renais, câncer e diabetes, resultado das sanções. A Venezuela procurou seus aliados internacionais – China, Cuba, Irã e Rússia – para garantir o fornecimento de equipamento e o apoio necessário. Esmagada pelo regime hostil de sanções conduzido pelos EUA e pelo bloqueio de navios de guerra estadunidenses, o governo venezuelano e seus aliados demonstraram determinação na decisão de quebrar o embargo americano.

Em 13 de março, a vice-presidente da Venezuela, Delcy Rodríguez, confirmou os primeiros casos positivos de covid-19: uma mulher de 41 anos que tinha viajado para Europa e Estados Unidos e um homem de 52 anos que havia ido à Espanha. No dia anterior, o governo suspendeu os voos – a partir de 15 de março – da Europa, Colômbia, Panamá e República Dominicana e começou a verificar os sintomas nos aeroportos e portos marítimos. Devido aos casos de viajantes que retornam da Espanha, foram solicitadas quarentenas obrigatórias para todos os passageiros que chegaram nos voos da Iberia nos dias 5 e 8 de março.

O governo levou a sério os conselhos da OMS e proibiu todas as reuniões públicas, suspendeu aulas nas escolas, ordenou o uso de máscaras no transporte público e, em 15 de março, pediu uma quarentena total em certos estados do país (La Guaira, Miranda, Zulia, Apure, Táchira e Cojedes, bem como na cidade de Caracas). Em dois dias, o governo confirmou 16 novos casos e, assim, estendeu a quarentena a todo o país por um mês. O uso de máscaras em público foi declarado obrigatório.

Era imperativo, novamente com base nas orientações da OMS, coletar informações médicas e epidemiológicas relevantes sobre a população. Em 16 de março, o governo anunciou que o Sistema Pátria – o sistema nacional de cartões estabelecido pelo presidente Nicolás Maduro em 2016 para facilitar o acesso a programas sociais e pagamentos eletrônicos – seria usado na luta contra a doença. Em 2017, o governo estabeleceu essa plataforma virtual para alcançar as partes mais vulneráveis ​​da população na luta contra os problemas causados pelas sanções. Por meio de um processo de registro voluntário, mais de 18 milhões dos cerca de 28 milhões de residentes da Venezuela se inscreveram no sistema, tornando-o a maneira mais abrangente de coletar informações e fornecer bens e serviços às pessoas. Ao longo dos anos, o Sistema Pátria se tornou a base para organizar o suprimento de alimentos, alocar assistência monetária e experimentar a moeda digital. No caso da luta contra a covid-19, o sistema foi usado para fornecer assistência financeira às pessoas, bem como fazer um inventário adequado das necessidades médicas.

Em 26 de março, o Departamento de Justiça dos EUA acusou os líderes venezuelanos de narcotráfico e estabeleceu uma recompensa pela captura de Nicolás Maduro, do ministro da Indústria e Produção Nacional da Venezuela, Tareck El Aissami, do ministro da Defesa Vladimir Padrino López e do presidente da Assembleia Constituinte Nacional, Diosdado Cabello Rondón, entre outros. No mesmo dia, o governo anunciou um plano de pesquisa e rastreamento da covid-19 com base no Sistema Pátria. O plano, focado em visitas domiciliares daqueles considerados mais vulneráveis ​​à doença, é um mecanismo eficaz na prevenção e detecção precoce de novos casos. Ao mesmo tempo, cria emprego para os profissionais de saúde em meio a uma crise econômica. O plano foi desenvolvido por equipes médicas venezuelanas e cubanas que trabalharam em estreita colaboração com as várias organizações populares, como conselhos comunitários, comitês locais de suprimento e produção, comitês de saúde e o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). A Venezuela realizou 929.599 testes para diagnosticar casos de covid-19, equivalente a 30.987 testes por milhão de habitantes.

Em 24 de março, o presidente Maduro reiterou a importância de medidas preventivas contra o vírus e intensificou o isolamento na região da capital. Naquele momento, foram anunciados mais sete novos casos de covid-19, elevando o total de 91 até então. Essa resposta do governo exigiu pelo menos o reforço de três tipos de instituições: 1) 46 hospitais dedicados a pacientes com covid-19; 2) centros de diagnóstico abrangentes, estabelecidos em 2005 como unidades de saúde locais, dentro de um projeto dos governos venezuelano e cubano; 3) centros de saúde privados. Com base em evidências científicas mais recentes, o governo circulou protocolos epidemiológicos e clínicos. Medicamentos como o antiviral cubano Interferon Alpha 2B e hidroxicloroquina foram introduzidos para auxiliar no tratamento de pacientes infectados, mesmo em centros médicos privados. Doze mil estudantes de medicina e enfermagem foram mobilizados para auxiliar no tratamento dos pacientes.

Os venezuelanos – familiarizados com as duras condições impostas pelas sanções – já haviam construído instituições de assistência e resistência política. Uma dessas são os importantes Comitês Locais de Abastecimento e Produção (Clap), criados em 2016 como um método para fornecer alimentos a pelo menos sete milhões de famílias que, de outro modo, passariam fome. O objetivo do sistema não é apenas atender às necessidades nutricionais básicas das pessoas, mas fortalecer as organizações comunitárias locais, já que esses órgãos estão em contato direto com o povo e realizam entrega de alimentos. Cada cesta do Clap possui suprimentos semelhantes (farinha, grãos, arroz, leite, óleo e carne enlatada); enquanto o preço de mercado dos produtos é de aproximadamente 11 dólares, o custo para o povo é inferior a um centavo de dólar. O programa Clap está sendo alvo de ataques direcionados pelo governo dos Estados Unidos, que tentou sancionar fornecedores estrangeiros de produtos alimentícios que compõem as cestas do Clap. Isso não dissuadiu o governo venezuelano que – apesar de vários problemas – continua comprometido em dar assistência ao povo. Em 2016, Aristóbulo Istúriz, então vice-presidente da Venezuela, disse que o programa é um “instrumento político para defender a revolução”; essa atitude permanece intacta. Em 19 de março, o governo criou um plano suplementar para o Clap, usando o programa como uma maneira de melhorar a assistência neste momento de bloqueio.

Em 24 de março, o governo ampliou ainda mais o programa Clap e – apesar da incerteza econômica imposta pelas sanções – sua distribuição é garantida até pelo menos agosto de 2020. Havia um plano de longo prazo para passar da importação de alimentos – incluindo os que estão nas cestas do Clap – para se tornar mais autossuficiente na produção de alimentos. O governo anunciou mais investimentos para fortalecer o Plano Nacional de Centralização de Compras Públicas, que administra as compras estatais de bens sociais, e incentivou a criação de formas de trazer alimentos do campo para as cidades. O Plano de Alimentação Escolar, que alimenta uma grande porcentagem das crianças da Venezuela, mudou neste momento em que as escolas estão fechadas para um plano de emergência de distribuição de comida nas casas dos alunos, preparada em cozinhas comunitárias que contam com a participação popular. O Plano Socialista de Produção, Distribuição e Consumo do Povo para o Povo aprimora o Plano de Alimentação Escolar com frutas e verduras de comunidades produtoras e uma metodologia participativa e pedagógica de trabalho. A cidade de Caracas estabeleceu um programa de entrega em domicílio, “Eu compro em casa”, com preços regulamentados de alimentos subsidiados e empregando trabalhadores cuja renda diária havia desaparecido, como o caso dos entregadores.

Uma série de outras políticas foi anunciada em 23 de março direcionada à economia já fragilizada. Utilizando o Sistema Pátria, o governo prestou assistência financeira direta às pequenas e médias empresas vulneráveis para que possam continuar pagando seus trabalhadores. Os pagamentos de financiamentos de moradia e alugueis foram suspensos e despejos foram proibidos. O governo também fez apelos às associações imobiliárias para que encontrassem uma maneira de gerenciar a crise de insolvência a longo prazo. Todos os pagamentos de juros de empréstimos foram suspensos por seis meses, e multas e juros sobre multas também foram abolidas. O governo ordenou que os bancos reclassificassem os créditos nesse período para proteger os históricos de crédito das pessoas. Como as comunicações são centrais – especialmente durante a quarentena -, o governo proibiu a suspensão dos serviços de televisão por cabo e telefonia (incluindo Internet) por seis meses. Para possibilitar a importação de bens essenciais para sustentar o país, o governo ofereceu isenções fiscais e investiu em setores estratégicos como produção e distribuição de alimentos, produção e distribuição farmacêutica e produção de equipamentos e produtos de higiene e limpeza.

Uma parte primordial da resposta venezuelana é a centralidade da capacidade de ação do poder público. A Revolução Bolivariana busca descentralizar o poder institucional por meio do poder popular, construindo instituições locais autogestionadas que coletivizem a produção. Cruciais para a realização desse processo são as comunas, seus conselhos comunitários e os comitês do Clap, bem como os movimentos sociais. As mulheres desempenham um papel central na liderança dessas entidades como parte das Missões Sociais; são as mulheres que cozinham todos os dias, que trabalham preparando infusões e fazendo máscaras e que prestam assistência às famílias que não têm os meios para educar seus filhos em casa. A resposta à pandemia é recebida não apenas pelo Estado, mas por esses órgãos descentralizados, altamente motivados e políticos. À medida que a guerra híbrida contra a Venezuela se aprofunda, a participação popular fortalece sua determinação em defender a Revolução Bolivariana contra o ataque à sua moeda, a hiperinflação e a agressão armada, intensificando a resistência popular. A reação à pandemia – tanto por parte do Estado quanto por meio da organização popular – tem desenvolvido esforços de socorro para atender às necessidades materiais imediatas das pessoas, juntamente com a firmeza política e a resiliência necessária para resistir aos ataques liderados pelos EUA.

Nas primeiras seis semanas do bloqueio, aproximadamente 49.628 pessoas retornaram à Venezuela, principalmente da Colômbia e do Brasil. Depois de fazerem testes nas fronteiras, entraram em quarentena obrigatória em centros administrados pelo governo. Apesar dessas medidas, muitos dos casos de covid-19 são importados – 77,8% dos 34 casos identificados entre 9 e 27 de maio eram de pessoas que vieram de fora do país.

Conhecendo esses riscos, o governo enviou aviões a Santiago (Chile), Lima (Peru) e Quito (Equador) para trazer os venezuelanos para casa sem nenhum custo, independentemente de suas afiliações políticas, e apesar dos obstáculos adicionais para gerenciar a crise e acessar suprimentos médicos adequados devido às sanções dos EUA. A Venezuela enfrentou hostilidade por parte dos governos da Colômbia, Peru, Equador e Brasil, mas isso não afetou a forma como o governo ajudou os venezuelanos que migraram para esses países. Além disso, quando o Ministério da Saúde da Colômbia disse que sua única máquina para diagnosticar covid-19 havia quebrado, Maduro se ofereceu para enviar duas unidades oriundas da China para a Colômbia – apesar do fato do país vizinho abrigar forças militares anti-venezuelanas na fronteira e atuar consistentemente como um “capacho” dos EUA. O governo venezuelano tentou coordenar essa oferta por meio da Organização Pan-Americana da Saúde, mas a Colômbia a rejeitou.

O ataque dos EUA à Venezuela e Cuba, bem como o compromisso conjunto com o socialismo, aproximaram os dois países. A resposta à covid-19 foi, portanto, coordenada de perto pelos dois Estados. O governo cubano enviou 10 mil doses de Interferon Alfa 2B; seu criador – Luis Herrera – visitou a Venezuela em 16 de março e elogiou a decisão venezuelana de impor a quarentena como uma maneira eficaz de romper a cadeia de infecção. No dia anterior, uma equipe de 130 médicos cubanos havia chegado para apoiar os esforços de combate ao coronavírus no país. Essa equipe se juntou à Missão Médica Cubana que está na Venezuela desde 2003 (seus membros alternam a cada dois anos). Em 23 de março, chegou uma equipe médica da República Popular da China para oferecer assistência, e a China – junto com a Rússia – enviou equipamentos médicos, medicamentos, testes de diagnóstico, reagentes, lentes de proteção, roupas de biossegurança e purificadores de ar para centros de saúde, e uma ponte aérea foi estabelecida entre Venezuela e China para facilitar a importação de bens essenciais.

Em maio, o Irã enviou cinco navios petroleiros com combustível para a Venezuela com a intenção de prestar socorro ao povo venezuelano, quebrando assim o bloqueio dos portos da Venezuela pelos EUA. Esses navios entraram no país com uma ampla mensagem de solidariedade pacífica entre os povos.

 

A los médicos cubanos, by Miguel Guerra (Utopix)-1

Aos médicos cubanos, Venezuela, 2020.
Miguel Guerra/Utopix

 

Kerala

Em 18 de janeiro, KK Shailaja, ministra da Saúde do estado indiano de Kerala, de 35 milhões de habitantes, liderado pelo governo da Frente Democrática de Esquerda (FDE), convocou uma reunião para discutir o que estava acontecendo em Wuhan, na China. A cidade chinesa ainda não estava em lockdown, mas Shailaja sabia que havia estudantes de Kerala em Wuhan e que, quando retornassem, haveria a possibilidade de trazerem o coronavírus para o estado. Em 22 de janeiro, o departamento de saúde enviou um alerta a todos os hospitais e autoridades distritais sobre a necessidade de se prepararem para o vírus. Em 24 de janeiro, Kerala montou a primeira sala de controle; no dia 28 do mesmo mês, já havia salas de controle em todos os distritos do estado. Também foram criadas instalações de isolamento em todos os distritos, dezoito comitês foram estabelecidos e medidas preventivas foram postas em marcha.

O primeiro caso de coronavírus em Kerala, um estudante de medicina que estava em Wuhan, foi detectado em 30 de janeiro; logo, mais dois tiveram resultado positivo e, em 3 de fevereiro, mais de 2.200 pessoas que retornaram a Kerala de regiões atingidas pelo coronavírus foram colocadas em quarentena. A vigilância exercida pelo estado mostrou-se eficaz: todos os três pacientes se recuperaram totalmente em poucos dias e não houve casos de contaminação secundária. O número de pessoas em quarentena logo diminuiu.

Mas no final de fevereiro, quando o coronavírus se espalhou para mais países, o afluxo de pessoas em Kerala a partir de regiões atingidas por coronavírus se intensificou. Várias pessoas – inicialmente provenientes da Itália e depois da região do Golfo Pérsico – apresentaram resultados positivos para a doença. Outras que tiveram contato com elas também contraíram a doença. Essa foi a segunda onda de infecções por covid-19 no estado. Nas semanas seguintes, Kerala continuou a rastrear os passageiros que chegavam ao estado não apenas por via aérea, mas também por estrada em 24 postos de fronteira, e por trem – uma tarefa árdua, dado o grande número de passageiros.

Kerala realizou um extenso rastreamento de contatos, usando mapas de rotas que continha os detalhes dos locais visitados pelas pessoas infectadas. As pessoas que estavam presentes nesses locais durante o período em que os doentes fizeram as visitas foram solicitadas a entrar em contato com o departamento de saúde. Os mapas de rotas foram amplamente divulgados pelas mídias sociais e pelo GoK Direct, o aplicativo para celular do governo de Kerala. Representantes eleitos de instituições autônomas locais e agentes comunitários de saúde ajudaram a rastrear contatos. A fórmula era clara: “rastrear, colocar em quarentena, testar, isolar, tratar”, como declararia mais tarde o ministro-chefe Pinarayi Vijayan – que também é membro do Bureau de Políticas do Partido Comunista da Índia (Marxista).

Aqueles que vêm do exterior ou de outros estados são colocados em quarentena, em centros designados para esse fim ou em casa. Aqueles que entraram em contato primário e secundário com pessoas infectadas ficam em quarentena. Os funcionários do departamento de saúde visitam ou ligam regularmente para verificar se os protocolos de isolamento estão sendo seguidos. Os que não têm instalações suficientes em casa para fazer uma quarentena eficaz são alojados em centros administrados pelo governo, e qualquer pessoa que desenvolva sintomas associados à covid-19 é hospitalizada. Testes e tratamentos são gratuitos e estão disponíveis para todos no estado.

Quando a covid-19 começou a ser reportada no estado, a ministra da Saúde KK Shailaja realizou entrevistas coletivas diárias para informar o povo sobre as últimas atualizações, e quais as medidas tomadas pelo poder público para combater o vírus. A partir de 10 de março, o ministro-chefe Pinarayi Vijayan começou a dar coletivas diárias, já que os esforços para conter a pandemia envolviam o trabalho de vários departamentos. Foram criados mais centros de testagem e de atendimento em todos os distritos, e mais 276 médicos e 321 inspetores de saúde foram nomeados.

O governo tomou medidas para fabricar máscaras e desinfetantes à luz da crescente  demanda, em vez de deixar o problema nas mãos invisíveis do livre mercado. O setor público assumiu a liderança na produção de mais medicamentos, álcool para as mãos e luvas. Kudumbashree, uma organização de coletivos barriais apoiada pelo governo que conta com 4,5 milhões de mulheres (aproximadamente um quarto da população feminina no estado), começou a confeccionar máscaras. Ativistas da Democratic Youth Federation of India [Federação Juvenil Democrática da Índia] e do Kerala Sastra Sahitya Parishad [Fórum de Literatura Científica de Kerala, maior movimento científico popular de Kerala] participaram do processo de produção de álcool para a higienização das mãos.

O governo lançou a campanha Break The Chain [Quebre a Corrente] para incentivar as pessoas a adotarem práticas necessárias na prevenção da covid-19. As organizações de funcionários públicos montaram quiosques de álcool gel para as mãos em frente a escritórios do governo. A Federação Juvenil construiu instalações para lavagem das mãos em 25 mil locais em todo o estado e serviços de atendimento telefônico para pessoas que precisavam de ajuda. A preparação, a máxima vigilância, a estrita adesão ao protocolo e a transparência foram cruciais na batalha de Kerala contra a covid-19.

No final de março, quando o resto da Índia despertou para a realidade da pandemia, Kerala já havia adotado um plano detalhado para aliviar as dificuldades econômicas de sua população. Em 12 de março, havia anunciado o fechamento de instituições de ensino e logo começou a entregar comida em casa para crianças matriculadas nas creches. Em vez de impor um isolamento geral sem levar em consideração se as famílias tinham condições de comer, ficar em suas casas ou cumprir as políticas que estão sendo implementadas – como feito pelo governo federal da Índia – o governo de Kerala impôs restrições gradualmente, tomando o cuidado de fornecer às pessoas as condições para cumpri-las. Em 19 de março, o ministro-chefe anunciou um pacote de ajuda de 200 bilhões de rúpias. O pacote incluía pagamento antecipado de aposentadorias, grãos alimentícios gratuitos por um mês, financiamento adicional de 5 bilhões de rúpias para saúde pública e relaxamento dos prazos das contas de serviços públicos e impostos.

O estado implementou um isolamento social a partir de 24 de março. O governo federal implementou o mesmo em todo o país a partir do dia seguinte. Comida já preparada está sendo fornecida a idosos que vivem sozinhos, a deficientes, aos que não podem cozinhar por causa de doenças e aos extremamente pobres. Comitês de defesa locais das Instituições Locais de Autogoverno (Local Self Government Institutions – LSGI) – os panchayats nas aldeias, municipalidade nas cidades e conselhos municipais nas cidades de grande porte – estão fazendo esse trabalho com a ajuda de voluntários. As cozinhas comunitárias foram criadas pelos LSGI e os voluntários entregam alimentos preparados nessas cozinhas nas casas daqueles que necessitam. Os membros dos sindicatos de esquerda ligados a LSGI, como o Sindicato de Funcionários do Município de Kerala, constituem a maioria daqueles que estão oferecendo seus serviços nas cozinhas da comunidade. O governo também distribuiu kits de mercadorias contendo 17 itens essenciais para todas as famílias gratuitamente.

Antecipando a possibilidade de interrupções nas cadeias de suprimentos devido ao isolamento, o governo do estado tomou medidas para garantir que o arroz, cultura básica da região, seja colhido sem interrupção. Também foram tomadas medidas para garantir a compra de arroz, vegetais e várias outras culturas.

Logo no início, o governo de Kerala reconheceu que os alojamentos para trabalhadores migrantes de outros estados indianos eram muitas vezes inadequados para garantir o distanciamento físico. Portanto, foram organizados acampamentos administrados pelo estado para os trabalhadores e providenciados exames médicos. Alimentos, máscaras, sabão e álcool gel foram disponibilizados a essas pessoas. Em 20 de abril, 19.902 acampamentos foram abertos para trabalhadores migrantes em Kerala, com 353 mil trabalhadores permanecendo – o maior número dessas instalações no país.

Kerala tem muitos conselhos de fundos para a assistência social para trabalhadores de vários setores, que fornecem benefícios de seguridade social ao recolher contribuições de empregados e empregadores em fundos de assistência. Todos os trabalhadores onde existem esses conselhos estão recebendo assistência financeira. Os que não colaboram com algum fundo estão recebendo mil rúpias.

A escala do trabalho voluntário em andamento é enorme. Além do voluntariado de funcionários do governo, membros de sindicatos, ativistas juvenis e estudantis, o trabalho da Força de Voluntariado Social, da juventude criada pelo governo, também tem sido uma parte crucial dos esforços. Em 23 de junho, 346.306 jovens haviam se registrado como voluntários, trabalhando para identificar aqueles que precisam de assistência, fornecer alimentos e itens essenciais, prestar assistência domiciliar de emergência, ajudar na operação de call centers e salas de controle, entregar materiais em acampamentos, comunicar alertas e prestar assistência nos hospitais.

Os esforços de Kerala para conter a segunda onda de infecções por covid-19 foram bem-sucedidos. Até 8 de maio, o número de casos ativos havia caído para apenas dezesseis. Uma terceira onda de infecções, porém, começou logo depois. Isso ocorreu porque, como parte do afrouxamento das medida de isolamento na Índia, as severas restrições às viagens interestaduais e à chegada de vôos internacionais que estavam em vigor começaram a ser flexibilizadas a partir da primeira semana de maio. Centenas de milhares de pessoas de Kerala que vivem no exterior e em outros estados indianos, enfrentando o aumento de infecções e mortes por covid-19, condições inseguras, falta de atenção médica e até perda de empregos em muitos casos, lutaram para voltar ao seu estado natal. O governo se comprometeu em trazer de volta todos aqueles que desejassem retornar. Mais de 315 mil pessoas retornaram a Kerala de outros estados e do exterior entre 4 de maio e 23 de junho. Como a maioria dos que voltaram vem de regiões com um número muito alto de casos de covid-19, isso levou a um aumento no número de infecções em Kerala.

Em 23 de junho, o número de casos positivos de covid-19 em Kerala era de 1.620 e 22 mortes. De todos os casos relatados no estado de 4 de maio a 23 de junho, 90,7% foram de pessoas que vieram do exterior ou de outros estados. Um total de 150.196 pessoas estavam sob observação neste momento – 147.990 em casa ou em centros de quarentena e 2.206 em hospitais. As restrições estão sendo flexibilizadas de maneira calibrada, mas não há espaço para complacência. As campanhas de conscientização continuam, existem normas sobre distanciamento físico, grandes reuniões não são permitidas e o uso de máscaras em público é obrigatório. O governo estadual continua realizando coletivas de imprensa regulares e fornecendo atualizações diárias para o público.

Os esforços do governo da Frente Democrática de Esquerda (FDE) estão enraizados em uma abordagem ampla para garantir o bem-estar a todos os cidadãos. Essa é uma abordagem que reconhece a importância do sistema público de saúde, bem como outros determinantes sociais e econômicos na saúde e bem-estar. Há a consciência de que a fome e a falta de moradia seriam sérios impedimentos à saúde. As medidas políticas do governo da FDE em meio ao covid-19 têm como objetivo abordar todos esses problemas, a fim de proporcionar alívio ao povo.

O objetivo é atingir todas as pessoas necessitadas. Em 9 de junho, 116.328 voluntários haviam sido enviados para identificar aqueles que precisam de assistência, para que ninguém fique descoberto. A estratégia do governo tem sido mobilizar todo o seu mecanismo estatal, incluindo o setor público e os LSGI, junto com as energias coletivas das poderosas organizações de massa e classe do estado, coletivos e cooperativas e o zelo dos cidadãos de Kerala por ações voluntárias. Essa é uma estratégia de mobilização total que integra o trabalho da máquina do estado ao trabalho do público em geral, tendo um papel fundamental as pessoas organizadas em movimentos de massa e classe.

Tudo isso foi possível como resultado de uma mobilização do Estado. Desde o momento em que o primeiro ministério comunista foi eleito em 1957, Kerala investiu em educação e saúde pública. Os governos liderados pelos comunistas assumiram a liderança na implementação de reformas agrárias que romperam com o latifúndio, melhoraram muito os padrões de vida dos camponeses e trabalhadores agrícolas e aumentaram o poder de barganha dos trabalhadores. O movimento da classe trabalhadora desempenhou um papel crucial nos salários de Kerala, o mais alto do país, e serviu como o fator mais relevante para que o estado tivesse as medidas de segurança social mais amplas para os trabalhadores, por meio dos conselhos de fundos para a assistência social.

A esquerda há muito defende a descentralização democrática. O maior esforço nessa direção foi a Campanha de Planificação Popular, iniciada pelo governo da FDE em 1996. Os LSGI foram bastante fortalecidos por essa Campanha, que levou a uma transferência muito maior de fundos e poderes aos órgãos locais. Isso expandiu significativamente a capacidade dos LSGI de intervir efetivamente em momentos de necessidade e agora lideram os esforços de auxílio no estado. Kudumbashree também foi iniciada pelo governo da FDE em 1998 e fortalecida nos mandatos subsequentes da Frente.

Os serviços de saúde pública em Kerala receberam seu maior impulso durante o mandato do atual governo da FDE, que chegou ao poder em 2016. Isso se deve em grande parte à Missão Aardram, um ambicioso programa lançado em 2017 para atualizar os serviços públicos de saúde do estado. Kerala tem há muito tempo o melhor sistema de atenção primária do país, centrado nos Centros de Saúde Primários (CSP). O atual governo da FDE avançou e expandiu significativamente esse legado. Agora, de acordo com as classificações oficiais, os 12 principais CSP da Índia estão em Kerala. Como parte da Missão Aardram, todos esses centros estão sendo aprimorados para Centros de Saúde da Família (CSF) com maior flexibilidade nos horários de funcionamento (os CSF têm serviços ambulatoriais de manhã à noite, em comparação com a manhã e o meio-dia nos CSP) e mais médicos. As instalações em todos os hospitais do governo melhoraram bastante. Foi isso que permitiu ao sistema de saúde enfrentar o desafio da covid-19. Ao mesmo tempo, os esforços do governo federal liderado pelo Partido Bharatiya Janata de extrema-direita (BJP) para privatizar o setor de saúde tiveram a resistência do governo da FDE de Kerala. Em fevereiro deste ano, o governo federal propôs que os hospitais distritais dos estados indianos fossem privatizados e Kerala rechaçou a medida categoricamente.

 

O melhor das possibilidades humanas

O CoronaChoque revela uma profunda divisão entre países capitalistas e socialistas. Essa divisão pode ser melhor compreendida, como mostramos, por meio de quatro eixos:

Socialismo

  1. Ciência
  2. Setor público
  3. Iniciativa popular
  4. Internacionalismo

Capitalismo

  1. Obscurantismo
  2. Setor pró-lucro
  3. Atomização e paralisação da população
  4. Ufanismo e racismo

É claro que há exceções a essas reações entre os Estados capitalistas. Vários países do leste asiático – como Japão e Coréia do Sul – assim como Austrália e Nova Zelândia tinham a experiência da epidemia de SARS em 2003 e não destruíram sua infraestrutura de saúde pública nas décadas seguintes; com base na experiência da SARS, não fizeram pouco caso dos relatórios da OMS.

De um modo geral, porém, são os Estados socialistas os que enfrentam o vírus com determinação e inteligência; ainda que também precisem enfrentar o peso do imperialismo dos EUA e uma guerra híbrida cada vez mais agressiva (especialmente no caso de Cuba e Venezuela). Essas sociedades e seus Estados agiram com determinação e tenacidade para romper a cadeia de transmissão e evitar traumas individuais e sociais, além de um deserto econômico para seus povos. O capitalismo é incapaz de enfrentar um desastre que ele criou de várias maneiras; o socialismo, por outro lado, traz à tona as melhores possibilidades humanas.