Uzma Nawchoo, “Quando éramos pequenos, as coisas eram realmente simples; eles apenas usavam kaend-taar (arame farpado) para fazer uma gaiola. Agora, quando somos adultos, estamos enjaulados em algo de ponta chamado arame farpado”, 2019.

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Mais de sete milhões de caxemires continuam sufocados pelo governo indiano. O toque de recolher que entrou em vigor em 5 de agosto continua. A mídia não pode entrar no Estado e registrar a situação. Os serviços de telefone e internet foram cortados. Mais de dois mil acadêmicos, jornalistas e políticos estão em cadeias ou em prisão domiciliar. Mais recentemente, o governo indiano prendeu Farooq Abdullah (82 anos) sob a Lei de Segurança Pública de 1978 (que a Anistia Internacional chama de “lei sem lei”). O pai de Abdullah – Sheikh Abdullah – foi o líder incontestável do movimento de libertação da Caxemira na década de 1940.

Apesar da produção de um estado de medo, pessoas corajosas saíram às ruas para protestar contra a situação. Um alto funcionário do governo disse que houve pelo menos 722 protestos desde 5 de agosto. Esse é um testemunho da firme determinação do povo da Caxemira para impedir sua eliminação. Mas seus protestos e suas palavras não estão sendo amplificados. É como se a Caxemira tivesse desaparecido do mapa.

Entre os corajosos caxemires está Mohammed Yusuf Tarigami, o líder do movimento comunista no Estado. Tarigami, que vem de uma pequena vila no sul da Caxemira, passou os últimos 50 anos lutando por seu território, sonhando com uma Caxemira livre da guerra e pobreza. Ele ganhou um assento na Assembleia Legislativa de Jammu e Caxemira quatro vezes (1996, 2002, 2008 e 2014), uma assembleia que o governo de direita em Nova Déli suspendeu. As prisões são tão familiares para ele quanto a Assembleia. Há “raiva acumulada” dentro da Caxemira, diz ele, raiva que não tem saída política fácil. Para saber mais sobre a situação na Caxemira, leia o Alerta Vermelho nº 1 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.


Em 12 de setembro, milhares de pessoas foram às ruas do Sudão para pedir a renúncia do chefe de justiça e do procurador-geral. A Associação de Profissionais do Sudão – e o Partido Comunista do Sudão – disseram estar descontentes com o fato de que as rédeas do poder estejam com pessoas como os generais Abdel Fattah al-Burhan e Mohammed Hamdan Dagalo. Eles querem um governo com um caráter mais civilizado. Para entender a situação no Sudão, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lançou esta semana o Alerta Vermelho nº 2. Você pode baixá-lo aqui ou ler abaixo:

O que aconteceu no Sudão?

Em 19 de dezembro de 2018, uma revolta começou no Sudão. Esse levante culminou com a queda do presidente do Sudão – Omar al-Bashir – em 11 de abril de 2019. O Exército realizou um golpe militar conservador para abortar a maré revolucionária e manter as mesmas políticas antigas. Dissolveu o parlamento e estabeleceu um regime militar de dois anos liderado pelo Conselho Militar de Transição. As forças revolucionárias – reunidas na Aliança pela Liberdade e Mudança, com o Partido Comunista do Sudão e a Associação de Profissionais do Sudão – continuaram sua marcha adiante, determinadas a fazer uma revolução completa. O conflito entre o Conselho Militar de Transição e a Aliança pela Liberdade e Mudança continua. Pode resultar em um desfecho semelhante ao do Egito, onde o regime militar se disfarça de partido democrático, ou pode ainda avançar rumo a uma democracia revolucionária.

Por que os sudaneses se revoltaram?

Em 2018, a variedade de pressões sociais negativas surgiram como resultado da estagnação econômica. A taxa de crescimento caiu para -2.3% naquele ano. Isso se deu a pelo menos quatro fatores:

a) Guerras. Omar al-Bashir estava no poder desde 1989. Ele supervisionou duas guerras sangrentas nesse período. A primeira foi entre o norte e o sul do país, um conflito que em sua segunda fase durou de 1983 a 2005. Essa guerra resultou na morte de 2 milhões de pessoas, no deslocamento de 4 milhões e na divisão do país, em 2011, entre Sudão e Sudão do Sul. A segunda guerra ocorreu na província de Darfur, que resultou na morte de milhões de pessoas e na destruição dessa vasta região marginalizada que foi profundamente impactada pela dessecação do deserto do Saara. Ambos os conflitos enfraqueceram o país.

b) Petróleo. A economia do país depende da exportação de petróleo, sendo que as maiores reservas estão na porção sul do país. Com a partição de 2011, o Sudão perdeu 75% das reservas. Em 2008, no entanto, 21,5% do PIB do Sudão veio de exportações de petróleo (e gerou uma taxa de crescimento de 11,5%). Quando os preços globais do petróleo entraram em colapso em 2014, a economia do Sudão entrou em rápido declínio.

c) FMI. Até 2017, o Sudão tinha uma dívida externa de mais de 50 bilhões de dólares – 61% de seu PIB – com cerca de 84% em atraso. O Sudão devia 89% do montante aos países e bancos comerciais (o restante às instituições financeiras internacionais). Em novembro de 2017, o FMI recomendou ao governo do Sudão que reduzisse os subsídios para pão e combustível e desvalorizasse a libra sudanesa. O governo seguiu o conselho do FMI. Naquele momento, 50% da população sudanesa já vivia na pobreza. A situação ficou fora de controle após os cortes nos subsídios e a desvalorização.

d) Irmandade Muçulmana. Desde 1976, o Sudão aderiu ao Islã político. O ditador Jaafar al-Nimeiri, apoiado pelos EUA, aliou-se à Irmandade Muçulmana naquele ano. Uma revolta em massa eclodiu em abril de 1985, resultando na derrubada do regime de al-Nimeiri e abriu caminho para a restauração de um processo democrático. Foram feitas tentativas entre 1985 e 1989 para alcançar uma solução pacífica para a guerra civil no sul e abolir a lei da Sharia introduzida por al-Nimeiri e pela aliança da Irmandade Muçulmana. No entanto, o processo democrático teve vida curta. Em junho de 1989, a Irmandade Muçulmana realizou um golpe, derrubou o governo eleito democraticamente, dissolveu o parlamento, partidos políticos, sindicatos e todas as organizações da sociedade civil. Foi imposto um regime mais reacionário que resultou na continuação da guerra no sul, na destituição do trabalho de mais de 250 mil trabalhadores e funcionários públicos, no estabelecimento de “Casas Fantasmas” onde os líderes das forças democráticas eram torturados (alguns assassinados). Omar al-Bashir, que herdou esse regime, continuou a agenda da Irmandade Muçulmana. Em vez de enfrentar os sérios problemas políticos, econômicos e sociais do Sudão, os governos de al-Nimeiri e al-Bashir se esconderam atrás de uma dura agenda cultural (que incluía leis de blasfêmia, leis contra os direitos das mulheres e políticas contra a diversidade dos povos do Sudão e sua cultura). Tanto al-Nimeiri quanto al-Bashir caíram porque não tinham resposta para as crises econômicas e porque sabiam apenas reprimir os levantamentos contra o FMI.

 

Como os sudaneses se revoltaram?

O levante começou em Atbara, uma cidade operária que testemunhou o nascimento do movimento sindical sudanês na década de 1940. O resíduo dessa luta e da vitória na derrubada do ditador britânico Ibrahim Abboud (outubro de 1964) e al-Nimeiri (abril de 1985) permanece.

Uma série de formações políticas mais antigas (o Partido Comunista Sudanês e a União das Mulheres do Sudão) e outras mais recentes (a Associação de Profissionais do Sudão, formada em 2016 por 17 sindicatos) se juntaram a essa luta atual com grupos da sociedade civil e partidos políticos ao lado de um novo grupo cujo nome define o clima no país – Girifna [estamos enojados]. Esses grupos se reuniram em torno de uma Declaração de Liberdade e Mudança, que exige a democratização completa da política e da economia do país, além de compromisso com a saúde, educação, moradia e proteção do meio ambiente. Também pedem a formação imediata de um Comitê Nacional para a Constituição. Essa Declaração unifica os vários atores políticos.

O que é possível no Sudão?

Por enquanto, os militares parecem ter a vantagem. Diante da determinação e continuação heróica do movimento contestatário de massa, sob a liderança da Aliança pela Liberdade e Mudança, e o apoio de oficiais subalternos, a junta militar aceitou as propostas de compromisso da União Africana para compartilhar o poder com a Aliança nos próximos três anos. As forças armadas não estão preparadas para esmagar completamente o movimento, porque muitos oficiais menores não-comissionados estão solidários com seus objetivos. Isso não significa que os militares – como al-Bashir antes – não usaram violência – eles a têm usado, de fato.  Mas a aliança, enraizada na Declaração, tem sido resiliente. Para eles, o processo revolucionário não terminou.


A sensação de um processo sem fim vem do Sudão, mas também define a situação na Caxemira e na Tunísia. Em 1971, a ditadura militar no Sudão levou o líder do Partido Comunista Sudanês – Abdel Khaliq Mahjub – a um tribunal. Ele foi condenado à morte e executado. Mohammed el-Fayturi (1929-2015), um dos poetas mais maravilhosos do Sudão, escreveu o requintado Não cavem um túmulo para mim em homenagem a Mahjub.

Não cavem um túmulo para mim;

Eu estarei em cada centímetro de terra.

Vou viver como a água no corpo do Nilo;

Como o sol sobre os campos da minha terra natal.

Eu sei por que tiranos acreditam em suas armas.

Eu não tenho medo –

Minha voz é a forca para todos os tiranos.

Uma das companheiras próximas a Mahjoub foi Fatima Ahmed Ibrahim, cujo marido – al-Shafie Ahmed al-Sheikh foi executado ao lado de Mahjoub em 1971. Fátima foi a primeira mulher a entrar no parlamento do Sudão, em 1965, como membro do Partido Comunista Sudanês. Ela já era membro do comitê central do Partido e presidente da União das Mulheres do Sudão. Foram mulheres como Fátima Ahmed Ibrahim e são homens como Mohammed Yusuf Tarigami que construíram o caminho que devemos continuar a construir para o futuro. Construir caminhos, dizem eles, não sepulturas. Essa é a nossa perspectiva.

Cordialmente, Vijay.