Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Os corpos de trezentos brasileiros tornaram-se frios e submersos em 13 milhões de metros cúbicos de lama de minério de ferro que saíram de uma barragem de rejeito em uma mina de propriedade da Vale – uma das maiores mineradoras do mundo. Revolta foi a emoção comum gerada pelas notícias de Brumadinho, em Minas Gerais.

Em 1984, um dos poetas mais célebres do Brasil – Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) – escreveu “Lira Itabirana”. Poderia ter sido escrito ontem.

I

O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

II

Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!

III

A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.

IV

Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

A tragédia de Brumadinho forçou o governo a agir, mas como todos os governos desse tipo, foram presos os gerentes de baixo escalão. O longo braço da lei se encurta quando se trata de crimes corporativos. A Vale (capitalização de mercado em 77,4 bilhões de dólares) permanecerá impune. Algumas multas serão pagas, mas isso provavelmente será resolvido pelas companhias de seguro. Não há confirmação ainda de que a lama de minério de ferro seja tóxica.

Há três anos, outra barragem rompeu em outra mina de rejeitos da atividade mineradora coadministrada pela Vale e pela gigante australiana de mineração BHP Billiton, na cidade de Mariana (MG). Naquele momento, as companhias disseram que a lama não era tóxica, e a mesma ladainha sobre indenizações e novos regulamentos se iniciou. Na época, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos divulgou uma declaração importante – muito negligenciada – sobre o desastre de Mariana. O relator especial da ONU sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente, John Knox, e o relator especial sobre Direitos Humanos e Substâncias e Resíduos Perigosos, Baskut Tuncak, escreveu: “As medidas tomadas pelo governo brasileiro, Vale e BHP Billiton para evitar danos foram claramente insuficientes”. O governo e as empresas devem fazer tudo o que estiver ao seu alcance para evitar mais danos, incluindo a exposição [dos mineiros e residentes da área] a metais pesados ​​e outros produtos químicos tóxicos. A explosão da barragem de 2015 liberou 50 milhões de toneladas de resíduos de minério de ferro, o suficiente para encher 20 mil piscinas olímpicas. Nada foi feito naquele momento e nada será feito agora.

A indústria extrativista gera muito dinheiro e são tratadas como realeza pelos governos em todo o mundo; elas vêm e fazem exigências aos países, pagam taxas miseráveis para destruir a paisagem e obter lucros fabulosos roubando as riquezas da terra. As empresas que dominam esse setor – da Glencore à Barrick – são majoritariamente da Austrália, Canadá, China, Grã-Bretanha, Argentina e Brasil; a maior, a Glencore, fica na Suíça. Suas receitas anuais chegam a centenas de bilhões, seus executivos têm vidas luxuosas e os chefes de governo os protegem do constrangimento de sua profissão.

O Canadá é o lar de metade das empresas de mineração do mundo, que atraíram a atenção das Nações Unidas por seus abusos contra os direitos humanos e o meio ambiente. A ONU denunciou o comportamento de empresas canadenses como a Barrick Gold (que enfrentou problemas com sua segurança privada nas terras altas de Porgera, na Papua Nova Guiné), Goldcorp (acusada de contaminar aquíferos em Zacatecas, México), e Hudbay Mineral (acusada de participar de despejos violentos, durante os quais mulheres foram agredidas sexualmente, em Lote Ocho, Guatemala). É fácil esconder-se atrás do sorriso encantador de Justin Trudeau em vez de estabelecer um órgão independente para investigar os abusos dos direitos humanos pelas 1500 empresas de mineração canadenses que operam 8 mil locais em mais de cem países. Segundo, McDiyan Robert Yapari, líder da Associação Akali Tange, em Porgea (Papua Nova Guiné), a Barrick Gold e sua parceira (a chinesa Zijin Mining) têm cerca de 940 denúncias de abusos de direitos humanos contra eles. Os pedidos de investigação da associação “caíram em ouvidossurdos”, diz ele. No Instituto Tricontinental de Pesquisa Social estamos produzindo um relatório sobre as empresas de mineração do Canadá e seu impacto no mundo. Por enquanto, visite nossos amigos da Mining Watch (Canadá) para mais detalhes.

People hold placards reading “Justice now for Marikana, Prosecute police now, Drop the charges, Fight for the living wage” as people attend on August 16, 2014 in Marikana, a ceremony in tribute to miners who where gunned down by the South African police during a violent wave of strikes two years ago. Thousands of South African platinum mineworkers on August 16 gathered at Marikana to commemorate the second anniversary of the killing of 34 of their colleagues by police during a strike. AFP PHOTO/MARCO LONGARI (Photo credit should read MARCO LONGARI/AFP/Getty Images)

Em seu notável A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1844), Fredrich Engels escreveu: “a mina de carvão é o cenário de uma grande quantidade das mais terríveis calamidades, e estas devem ser imputadas ao egoísmo da burguesia”. O que aconteceu em Brumadinho, como o nosso escritório da Tricontinental, em São Paulo, afirmou em artigo, não foi um acidente, mas um crime. O mesmo serve para outros crimes de mineração, de Soma (Turquia) a Copiapó (Chile). As principais empresas de mineração pouco se importam com a vida e a subsistência dos mineiros e com aqueles que vivem nas proximidades das minas. Essas áreas são as zonas de sacrifício do planeta, conforme escrevo em meu artigo esta semana. As grandes corporações declararam uma guerra contra o planeta, suas máquinas cavando cada vez mais fundo para fazer montanhas de lucro para poucos, enquanto milhões de pessoas morrem de fome e desnutrição. As pessoas que vivem nessas zonas de sacrifício são tratadas como descartáveis e sem valor.

Crimes de mineração são incessantes. Eles aparecem todos os dias. Alguns são mais espetaculares que outros. É difícil esquecer os 33 mineiros que ficaram a 700 metros dentro da mina de Copiapó, propriedade da mineradora San Esteban, por 69 dias, em 2010. Quando os homens saíram da mina – uma milagrosa operação de resgate – disseram ao jornalista Héctor Tobar. “A mina está chorando muito”. A mina chora e os mineiros também. Enquanto isso, as empresas de mineração e suas extensões nos governos lustram suas armas e abrem fogo. A atrocidade em Marikana (África do Sul), onde 34 mineiros na mina de platina Lonmin foram mortos a tiros pela polícia, é uma ferida aberta. O diretor da Lonmin na época era o atual presidente da África do Sul – Cyril Ramaphosa. Para ler uma reportagem memorável sobre o massacre de Marikana e a comunidade que o vivenciou, leia o trabalho de Niren Tolsi e veja as fotografias de Paul Botes.

A imagem acima é de Mgcineni Noki (30 anos), conhecido por sua família e amigos como Mambush. Ele era um operador de perfuração na mina e participou da greve de 2012. No dia 16 de agosto, Mambush pegou o megafone e agitou o moral de seus colegas grevistas. “Estamos cansados de ser cativos”, disse ele. “Vamos decidir quem ficará aqui – ou a polícia ou nós”. Ele estava desarmado, assim como seus companheiros. Ele foi morto não muito tempo depois de dizer: “não corram. Nós não fizemos nada de errado”.

As minas e os mineiros choram por causa da insensibilidade do nosso sistema e seus gerentes. Acima, Donald Trump diz à Fox News, em 2011: “Estou interessado na Líbia se tomarmos o petróleo. Se não tomarmos o petróleo, não me interessa ‘. Dois anos depois, Trump enviou este tweet,

Agora, o conselheiro de Segurança Nacional de Trump, John Bolton, diz à Fox News, sem rodeios, que o desejo dos EUA de mudança de regime na Venezuela é por causa do… petróleo!

“Estamos olhando para os ativos de petróleo. Esse é o fluxo de renda mais importante para o governo da Venezuela”, disse ele. “Estamos vendo o que fazer com isso”.

Guerras por recursos são precisamente o tema da conversa que tive com o jornalista Jeremy Scahill em seu podcast Intercepted esta semana. Você pode ouvir o episódio aqui.

O dinheiro quer perfurar a terra, pegar recursos e ganhar mais dinheiro com isso. Nada mais é importante – nem o bem-estar dos seres humanos e da natureza, nem qualquer adesão à verdade. Homens como Trump, Bolton e Fábio Schvartsman, da Vale, soletram “democracia” à sua maneira: LUCRO.

Há poucos dias, o presidente de Gana, Nana Afuko-Addo, falou na Cúpula de Mineração Africana de Indaba, na Cidade do Cabo (África do Sul). “Muitos tronos e coroas estrangeiras são adornados com pedras preciosas tiradas de nossas terras”, disse ele, “nem sempre por meios diretos”. Os locais de onde essas matérias-primas são roubadas, disse o presidente do segundo maior produtor de ouro da África, depois da África do Sul, “parecem os lugares mais carentes da Terra”. “Acredito que amadurecemos”, disse ele. “Não devemos dar incentivos fiscais e royalties diferenciados. E as empresas de mineração não podem esperar obter lucros extraordinários em nosso continente”. Mas assim acontece – e continuará a acontecer enquanto os povos desses Estados – da Zâmbia ao Brasil – estiverem enfraquecidos.

A questão é fortalecer o poder popular.

Um milhão de comunistas se reuniram na Brigada em Calcutá (Índia), enviando um sinal de que a esquerda estaria nas ruas para expulsar o governo do primeiro-ministro Narendra Modi e lutar por uma alternativa (para mais informações sobre a eleição indiana, ver nosso Dossiê nº 12). Na manifestação, uma ex-ministra da Frente de Esquerda e líder do Partido Comunista da Índia (Marxista), Deblina Hembram, fez um discurso inspirador. Ela vem de uma comunidade Adivasi, pessoas que vivem nas zonas de sacrifício do mundo. “Nós, Adivasis, vivemos no colo da natureza”, ela disse. “A dança vem naturalmente para nós. Nós não precisamos de ajuda com isso. Precisamos de educação, reconhecimento e prestígio para a nossa língua. Precisamos de escolas, faculdades e moradias”. Precisamos, disse ela, viver no mundo, não sermos apadrinhados pelo mundo, não ter nossos recursos roubados e nossas terras saqueadas.

Não sermos levados pela lama, esquecidos e descartados.

Cordialmente,

Vijay.