Nuestra América latina e caribenha. Entre a ofensiva neoliberal conservadora e as novas resistências
Berta Cáceres, 1971-2016
Os povos da América Latina e do Caribe enfrentam há alguns anos um novo avanço do imperialismo e do capital, da direita e dos projetos neoliberais e conservadores. Essa ofensiva, que promove um renovado processo de recolonização de nossos países e uma agenda de reformas pró-mercado reproduzidas em cada país, tem trazido consequências e mudanças regressivas tanto no plano social e econômico como no político e democrático. Diante dela, novos processos de luta e mobilização popular têm ocorrido na região, como mostram os recentes ciclos de protestos e levantamentos no Chile, Equador e Haiti, para mencionar apenas os epicentros atuais das resistências populares. Os efeitos de suas políticas corroeram a legitimidade dos governos que as promoveram, como se expressou na Argentina na recente eleição presidencial, ou no Brasil, com a queda de popularidade de Jair Bolsonaro. Entretanto, tudo isso está longe de significar o fim da ofensiva neoliberal ou o retrocesso dos poderes econômicos que a fomentam, cuja força se sustenta no controle do capital, na violência e nos meios de comunicação.
Esse cenário complexo de uma batalha em curso coloca uma série de desafios e questões para os movimentos populares e o pensamento crítico. Entre as principais perguntas que surgem, a primeira seria: quais são as características deste ciclo regressivo, e qual a profundidade e efeitos, em termos sociais e subjetivos, das transformações que têm sido impostas ou estão sendo levadas adiante? Nesse sentido, quais são as especificidades do capitalismo contemporâneo e da agenda de mudanças atuais? Em contrapartida, a dimensão imperial desses processos nos leva a perguntar: quais são as estratégias e os modos de intervenção promovidos sobre a região pelo governo dos EUA? Qual o papel do contexto global de declínio do império estadunidense e de disputas geopolíticas globais? Quais possibilidades e desafios surgem com a emergência da China como novo centro hegemônico do capitalismo global? Finalmente, está o debate sobre quais são as formas políticas, os modos de governo e de subjetivação social que essa ofensiva neoliberal adota e, particularmente, em qual momento dela nos encontramos em âmbito regional. Diante disso, surgem as perguntas sobre quais resistências, forças e programas populares que aparecem. Como repensar hoje as alternativas e a construção de um projeto popular de mudança? Quais fortalezas e debilidades os projetos progressistas e populares que ocorreram previamente nos deixaram como legado?
Essas perguntas, e outras certamente, condensam os desafios que enfrentam os movimentos populares e o pensamento crítico latino-americano. Começando com uma reflexão sobre o passado e o presente deste último, apresentamos a seguir uma síntese do debate ocorrido no I° Seminário Latino-americano organizado pelos escritórios de Buenos Aires e São Paulo do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, no final de maio de 2019.
Bartolina Sisa, 1753-1782
Ao longo de todo o século XX e até a atualidade, o pensamento crítico elaborado na América Latina e no Caribe, ou melhor, em Nuestra América — para utilizar a imagem proposta pelo cubano José Martí —, se caracteriza por uma destacada elaboração teórica a partir de uma reflexão sobre a prática política e os desafios que afrontam os povos, os sujeitos subalternos, os explorados e os oprimidos. Realizado por intelectuais comprometidos com esses movimentos e rebeldias — muitas vezes militantes orgânicos —, esse pensamento esteve marcado por intensos debates ao redor de certos núcleos problemáticos que marcaram em cada momento a centralidade dos projetos emancipatórios, a partir das lutas contra a dominação colonial e pela independência dos séculos XVIII e XIX, até os processos de libertação nacional e de mudança social sob as bandeiras do socialismo do século XX.
A partir dessa perspectiva, o campo do pensamento crítico abarca as diferentes tradições e correntes que dentro do marxismo se desenvolveram e frutificam hoje na região, assim como também a um amplo leque de estudiosos, obras e escolas que, sem se inscrever nessa matriz teórica, propõem uma visão questionadora da ordem social vigente que se vincula de distintos modos com os desejos de transformação social. Durante o século passado, esse pensamento concentrou boa parte de suas energias ao redor dos debates sobre as características da formação econômica e social na região, suas relações e subordinações com o imperialismo e o capitalismo, as configurações dos sujeitos subalternos, seus modos de organização, ação coletiva e ideários, e os programas de mudanças e estratégias políticas que propõem. Uma reflexão marcada também pela afirmação desafiante de José Carlos Mariátegui de que o socialismo indo-americano não pode ser nem decalque nem cópia, mas criação heroica das novas gerações.
Nos anos 1960, o pensamento crítico latino-americano experimentou um profundo impulso de renovação no contexto de um intenso ciclo de lutas sociopolíticas, marcado pela Revolução Cubana e pela onda revolucionária que ela abriu. Isso gerou, em particular, uma revitalização do marxismo latino-americano, que deu uma contribuição criativa ao debate regional e global com um caráter crítico e em contraposição ao difundido pela URSS naquele momento. Nesse contexto e até a atualidade, essa tradição formulou e propôs ao debate mundial uma série de correntes teóricas significativas, entre outras, a perspectiva das teorias da dependência, a filosofia da libertação, a colonialidade do poder, a ecologia política latino-americana, o feminismo popular, a pedagogia do oprimido e um novo constitucionalismo transformador de matriz liberal colonial do Estado-nação.
Nesse sentido, nos anos 1980, o debate pareceu se centrar nos desafios e estratégias diante das transições democráticas e da revolução; e nos anos 1990, no caráter, efeitos e alternativas à globalização neoliberal e ao Consenso de Washington. Da mesma forma, na década de 2000, se concentrou nas perspectivas, alcances e características das transformações pós-neoliberais e os sujeitos subalternos e movimentos sociais que as impulsionaram. Certamente, hoje, o pensar e fazer transformador em Nuestra América lida com o debate sobre as características da ofensiva neoliberal conservadora e os desafios que esta impõe aos movimentos populares e projetos emancipatórios. Um debate que aborda o capitalismo contemporâneo, os novos monstros que o motorizam e os futuros e presentes alternativos e necessários.
Eduardo Galeano, 1940-2015
No contexto global, uma das chaves da reflexão e ação crítica se refere à compreensão da tendência que atravessa os Estados Unidos e se ela expressa, e em qual dimensão, um período de crise de hegemonia. Assim, a perda de legitimidade de seu projeto imperial parece não ter retorno, e um ponto importante é o deslocamento do eixo da acumulação de capital em escala global do Ocidente para o Oriente. Nesse marco, a China se destaca como o centro desse novo padrão de acumulação global por seu crescimento econômico prolongado, mesmo quando houve desaceleração no último período, e também por um novo ciclo de inovações tecnológicas e investimento em pesquisa e desenvolvimento. O projeto da Nova Rota da Seda está incrementando as interconexões na Ásia e reativando produções de outras regiões do mundo. A partir disso, se coloca inclusive a pergunta sobre se, em alguns anos, voltaremos a presenciar um novo boom de preços de commodities que possa modificar as condições econômicas da América Latina. Entretanto, hoje, a disputa hegemônica aparece como instabilidade econômica generalizada, ciclos de endividamento e crises marcadas pelas lógicas financeiras e monetárias, assim como por uma intensificação das rivalidades e intervenções dos velhos e emergentes centros de poder sobre o Sul do mundo.
Em contrapartida, na América Latina — com exceção talvez da Bolívia que cresceu nos últimos anos a taxas superiores a 4% e está no caminho de repetir essa marca em 2019 — se vê uma fase de desaceleração econômica, inclusive de recessão e crise em alguns países, que se aprofunda pela dinâmica de financeirização que os Estados Unidos impulsionam. Pode-se observar que a progressiva decadência dos EUA como potência hegemônica global se expressa, como em situações similares anteriores, em uma aceleração da financeirização. Esse marco de crescente declínio frente à competência do eixo oriental (ao qual se soma a Rússia, com seu poder de veto para dissuadir a ação militar estadunidense) agiganta a importância que a subordinação absoluta da América Latina tem para os EUA, que consideram historicamente o território como seu “quintal”. Nesse sentido, se desenvolve uma crescente militarização na região, com operações e exercícios, por exemplo, na Amazônia e América Central.
Nessa direção, se intensificou nos últimos anos e meses uma “guerra híbrida” ou “não convencional” na Venezuela e Cuba que combinou bloqueio econômico, financeiro, político e midiático com estratégias de intervenção e desestabilização internas, com o objetivo de assegurar interesses tanto econômicos (o acesso às reservas venezuelanas de hidrocarbonetos e de minerais) como políticos (enterrar definitivamente o ciclo de governos populares que se seguiram às rebeliões contra a ofensiva neoliberal dos anos 1990). A ciberguerra, a intervenção paramilitar a partir da Colômbia, a profundidade da guerra econômica em todas as suas dimensões, as sabotagens, as operações de inteligência sobre os mandos militares, as tentativas de constituição de um governo paralelo e a ameaça de intervenção militar externa demonstram como se aplicam todos os preceitos elaborados para as guerras híbridas — inclusive alguns nunca vistos antes — diante de processos populares que não se subordinam ao império. Sobre esse tema, confira o dossiê n° 17, Venezuela e as guerras híbridas na América Latina.
Nesse sentido, as diferentes formas de intervenção promovidas pelo imperialismo e pela direita interna na Venezuela demonstram o quão estratégica é sua defesa para os movimentos populares. Em resumo, o que está em jogo na Venezuela é a possibilidade de que o império consiga impor uma reestruturação econômica, social, política e cultural duradoura na região. Obviamente, isso também dependerá do resultado das lutas populares que ocorrem em diferentes âmbitos e também em diferentes territórios. Os ciclos de lutas sociopolíticas recentes, particularmente intensas no Chile, Equador e Haiti, indicam a resistência popular que surge diante do programa único dessa ofensiva neoliberal e das organizações internacionais que a promovem, como o Fundo Monetário Internacional. Sua permanência nos últimos anos, bem como sua intensificação atual, nos faz questionar até que ponto isso pode significar uma mudança nas relações de força regionais e o início de um ciclo de amplo conflito social, talvez semelhante ao vivido na região entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000 e, particularmente, sobre as especificidades desses movimentos e protestos que os diferenciam do que aconteceu no passado recente.
Para uma avaliação global do momento no qual se encontra a ofensiva neoliberal, assim como do potencial dos conflitos e crise que ela desperta e dos novos cenários de mudança que se colocam, é fundamental considerar os resultados das eleições na Bolívia — com a reeleição de Evo Morales – das eleições na Argentina — com a derrota eleitoral do projeto macrista e o triunfo de Frente de Todos —, Uruguai — com a vitória da Frente Ampla no primeiro turno, ainda que com um cenário complexo para o segundo turno agora em novembro — e Colômbia — com o resultado das eleições regionais e a derrota do governo nas principais cidades do país. Esses resultados recentes nos fazem pensar sobre em que medida começa a se gestar na América Latina um novo momento de mudança política a nível regional. Por outro lado, ainda que possivelmente as limitações geopolíticas e econômicas do novo governo na Argentina sejam maiores que no período anterior, a mudança de tendência, somada à experiência mexicana e a continuidade na Bolívia e Venezuela, permitiria começar a pensar ao menos em uma situação mais aberta em direção à multipolaridade na região.
Nela Martínez, 1912-2004
Nesse marco global, a ofensiva neoconservadora e neoliberal assume características específicas que hoje são parte crucial do estudo e debate do pensamento crítico e dos movimentos populares. A necessidade do imperialismo e do capital de recuperar posições conduziu a uma nova onda de projetos neoliberais e de direita de caráter ultraconservador ou neofascista, que vêm disputando a hegemonia política em escala nacional em diferentes países, avançando sobre os trabalhadores e os povos, seus direitos e condições de vida. Sob essas forças se promove uma série de políticas comuns que caracterizam as transformações em curso. Invocadas com a denominação de “reformas”, essas medidas regressivas são promovidas no terreno trabalhista, previdenciário, tributário e fiscal, econômico, energético, na saúde e na educação. Remetendo ao chamado Consenso de Washington, aplicado na região nos anos 1990, o avanço, retardamento ou interrupção dessas “reformas” configuram um mapa móvel dos contornos que adquirem a ofensiva neoliberal e as resistências no continente. Merecem um capítulo particular os processos de regulação, privatização e apropriação privada transnacional dos bens comuns da natureza que ocorrem em toda a região, aprofundando o modelo extrativista exportador e tentando desmantelar as conquistas obtidas nos anos passados, com seus efeitos de saque e destruição socioambiental. Sobre isso, e em particular sobre suas consequências na Amazônia, confira nosso dossiê nº 14, Amazônia: a pobreza do povo como resultado da riqueza da terra.
Em contrapartida, essa ofensiva neoliberal parece se caracterizar por uma dissociação entre o que ocorre no plano econômico e no plano político. No primeiro caso, no contexto global referido, os projetos neoliberais estão sujeitos a uma extrema instabilidade e resultam incapazes de assegurar um ciclo de crescimento econômico, ainda que de caráter modesto e perene. Trata-se de um “neoliberalismo zumbi” que promove uma maior abertura das economias latino-americanas, inclusive com o retorno dos tratados de livre comércio, quando nos velhos centros do capitalismo ressurgem políticas protecionistas e se restringem os fluxos de capitais na periferia. Promove-se também um maior alinhamento com os Estados Unidos, particularmente no terreno geopolítico, pois necessita manter os laços econômicos com a China. Um “neoliberalismo zumbi” que — impulsionando processos ampliados de mercantilização e saque dos bens comuns, particularmente os bens naturais, e de incremento da exploração trabalhista — tem profundos limites para construir consentimentos majoritários em relação a suas políticas em condições democráticas e que, portanto, apela crescentemente a formas políticas e de subjetivação social conservadoras, sustentadas na intensificação da violência no laço social e na restrição das formas liberais de governo.
Assim, é no plano político que essa ofensiva neoliberal parece ter uma margem de inovação maior devido a uma série de questões próprias da situação global e regional. Por um lado, é evidente que a democracia liberal se encontra em uma crise profunda. Não só devido ao peso das estratégias de lawfare sobre lideranças populares, mas também por causa da produção neoliberal de certa subjetividade popular baseada no individualismo, na meritocracia e em um senso comum conservador que no Brasil tem tido muito peso, inclusive durante a campanha eleitoral de Bolsonaro. Evidentemente, a lógica das fake news está completamente ligada a essas intervenções políticas que tentam se apresentar, em ocasiões, como despolitizadas ou antipolíticas. Por outro lado, o avanço dos setores mais conservadores dentro do evangelismo tem sido um dos novos elementos dessa etapa em muitos de nossos países. É claro que no caso do Brasil isso adquire uma centralidade, devido tanto à grande porcentagem de fiéis que incluem as variantes neopentecostais como pelo peso político que mostraram durante e depois do processo eleitoral. Por último, há uma série de elementos que nos conduzem a pensar que efetivamente há indícios de certo ativismo de tipo neofascista “por baixo”, com capacidade de gerar mobilizações e ações de rua no Brasil, Colômbia e, claro, Venezuela.
Esses apontamentos nos permitem refletir sobre as razões pelas quais esses projetos não consolidam uma hegemonia estável, embora, em grande parte, mobilizem com sucesso os piores elementos subjetivos que a sociedade capitalista produz em sua fase atual e – através do uso maciço das redes sociais, novas indústrias culturais e TICs – dialogam com as preocupações de setores importantes das classes populares com relativo sucesso.
Estamos em uma conjuntura complexa do avanço neoliberal. No campo econômico, a estabilização não foi alcançada, enquanto na esfera política modelos ultraconservadores, repressivos, punitivos e até neofascistas são afirmados e implantados. Um contexto em que a crise social e as intervenções autoritárias parecem se complementar, fundamentando a perspectiva crítica que afirma que a implantação do neoliberalismo, longe de conjurar crises, implica sua imposição e gestão. Em vista dessas complexidades, é necessário repensar estratégias de disputa a partir de movimentos populares e projetos emancipatórios.
Rita Segato, 1951-
Nesse contexto, a consideração sobre o futuro e os desafios e possibilidades de mudança e resistência que nossos povos enfrentam levantam a reflexão sobre os modos e as capacidades de promover uma subjetividade alternativa, antineoliberal, antirracista, antipatriarcal e anticapitalista, bem como os desafios que dialogam com os processos de organização popular. Em relação a esses problemas, algumas das questões que suscitam nosso exame e debate coletivo podem ser apresentadas:
Essa lista de questões certamente não esgota as dimensões colocadas pela reflexão acerca dos futuros necessários e possíveis que alimentam e orientam o trabalho emancipatório. Da mesma forma, não é apenas uma questão de imaginar teoricamente esses futuros com base em nosso passado, mas também de refletir e espalhar as experiências populares que no presente atualizam e antecipam os futuros que buscamos. Nos dois casos, eles apontam as questões e os horizontes que norteiam a caminhada de nosso trabalho do Instituto Tricontinental.
Paulo Freire, 1921-1997